29 de março de 2010

Sete Dias

Hoje, caros leitores, deixo por aqui um tal de um conto. Foi escrito, mais uma vez, para a cadeira de Técnicas de Expressão do Português, que me anda a dar um trabalho desgraçado, mas curiosamente interessante e até revelador. Acho que tenho algum jeito para a coisa, apesar de, até agora, não fazer qualquer ideia disso mesmo. Sim, senhor!
Chama-se "Sete Dias" e nada tem a ver com a realidade. Não é baseado em ninguém, nem tem como pedra basilar para sua criação um qualquer outro texto ou história. Se não gostarem, aponto os meus galhardetes para esses importantíssimos motivos. Culpem-nos como fiéis leitores e admiradores (ou não) que são. Obrigado.
Acima de tudo, divirtam-se.

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Lá fora chovia. O céu negro ocultava em si a beleza e a luz de um sol, que, outrora contente, brilhava e se dava a mostrar, presenteando todos os mais inertes com um válido motivo para abandonarem as suas camas pelas primeiras horas da manhã.
Nunca chovera tanto. Os últimos anos haviam trazido consigo uma mal-amada seca e essa seca havia trazido consigo o desaire soturno de uma terra agora esquecida e apenas grande nas suas memórias. Mas agora chovia, trovejava e o tecto desta pequena cidade, lá para os lados de Itália, Florença em pormenor, parecia querer cair a qualquer momento sobre as desiludidas e cabisbaixas cabeças que se deixavam afogar no falso descanso que o domingo lhes trazia, com um sorriso amarelo, todas as semanas.
Era cedo e já Genaro estava a pé. Pouco ou nada tinha dormido e tudo porque o olhar dela continuava na sua mente. Ele, que tanto estimava uma boa noite de sono, era agora o homem que fazia companhia às estrelas, escuridão adentro, até chegar a manhã, sempre tímida e, nos últimos dias, nunca acompanhada do seu amante, o tal do sol. Sentia-se tão cansado e tão simultaneamente vivo. Agora sim, haviam motivos. Havia um porquê para sorrir aparvalhadamente, havia um porquê para não dormir, havia um porquê para não comer, havia um porquê para pensar, havia um porquê para viver, havia um porquê para todos os porquês. Não era ela, mas eram os seus longos cabelos, os seus carnudos lábios, as suas redondas bochechas, o seu resplandecente sorriso e o seu arrojado decote, delineando, ao de leve, as linhas mais belas e harmoniosamente violentas que ele já havia conhecido em 25 longos anos de vida. Ó, como a vida havia ganho vida!
Foi ao encontro da pouca luz que o seu quarto já abraçava. Lá, puxou a fita até mais não ser possível e abriu o seu estore para aquele que seria um novo domingo, não só mais um domingo, mas o seu domingo, seu e da sua amada. Despreocupado e entretido com mais uma simples tarefa rotineira, a que a vida obriga, pensou e decidiu que o melhor que tinha a fazer era nunca, nunca mais fechar os seus estores. Mas isso podia muito bem ficar para uma outra vida, afinal, eram já sete horas da manhã e ele não podia dar-se ao luxo de perder 17 mais horas de felicidade. Abstraído por estes pensamentos, nem deu pela entrada, de rompante, no quarto, da sua fiel e sempre disponível Madalena, governanta da família há mais de 30 anos, uma segunda mãe e uma primeira quando a sua verdadeira progenitora gastava as horas ao relógio, passeando-se pelos palcos da aristocracia Florentina:
- Menino, bom dia. – começou lentamente a recém-chegada - Não quis incomodar, peço desde já desculpa, mas a família quis adiantar o funeral. Começa daqui a duas horas. O senhor padre lá aceitou depois de tudo o que aconteceu àquela paz de alma. Não merecia, coitada. Não merecia, é o que lhe digo, menino. Valha-nos Deus, valha-nos nosso Senhor!
- Valha-nos o amor, Madalena. Valha-nos o amor. Deus anda ocupado, deixai-o estar.
- Quando o menino fala assim até se me arrepia a espinha! São lá isso coisas que se digam, Genaro?! Ele ouve! Ele ouve e castiga! Olhe, por exemplo, para esta desgraça. Uma santa, que era o que ela era na verdade, que resolve largar tudo, pais inclusive, para se casar com um qualquer, sabe-se lá bem aonde! Bastou-lhe isso, menino! Bastou a Deus ouvir e saber de tal coisa para deixar aquela frágil vida ir acabar-se no leito de um rio, depois de se despistar daquela ponte e...
- Deixe-se disso, meu simpático despertador! – interrompeu-a Genaro da maneira mais simpática que conseguiu – Já lhe disse que esse tal de Deus tem bem mais o que fazer. E assim tenho eu, também. Tenho de me vestir e nem sei ainda o que levar, para tal sítio.
- Tal sítio?! É um funeral, meu filho! Quer ir como? Obviamente que leva o seu mais caro fraque, porque aquela menina merecia-o. Ela que sempre foi o exemplo perfeito da própria perfeição. Leve o fraque e deixe-se de histórias! Podia não a conhecer assim tão bem, mas as vossas famílias sempre se deram pelo melhor. Ainda foram largos anos de convívio, meu filho. Não tem porque pensar!
- Mas tenho, Madalena. Não deve o meu corpo carregar aquilo que a minha alma não veste.
- Genaro, não gosto nada quando abre a boca para dizer tal tipo de coisas. Compreendo que esteja abalado, todos estamos, mas é um cortejo fúnebre, é um último adeus. Pede preto! Não há lá ninguém feliz, meu pequeno!
- Estarei lá eu. Marcarei presença pelo lado obscuro da felicidade, que tanto tem fugido destas nossas terras, destas nossas paragens. Para o bem ou para o mal, lá estarei. Daí achar que o preto me leva um bocadinho da sinceridade. – afirmou Gerano com um sarcástico sorriso nos lábios.
- O que se passa consigo, meu filho? – questionou Madalena claramente apoquentada - Juro que desde há uns dias para cá não me parece o mesmo. Temo, até, que seja obra do diabo. Saiu na segunda-feira de manhã o meu Genaro e voltou umas quantas horas depois o Demo, com uma debaixo da língua, duas nas mãos e três atrás das costas.
- Ó minha cara Madalena, um dia ainda hei-de descobrir onde vai buscar essa brejeira veia poética. Temo é que hoje não será tal dia, para mal dos meus pecados e das minhas mazelas. Deixe-me então vestir o fraque e fazer-lhe a vontade. A minha alma tratará de iluminar o tom negro desta sobrevalorizada peça de roupa que o Homem um dia resolveu impingir ao mundo. Dez minutos e lá estarei em baixo. – fechou Genaro o assunto, querendo alguns momentos consigo mesmo.
Vestiu-se, não ligando em nada aos pormenores, e fez de tudo para parecer o menos aperaltado possível. Sentia-se mal por se sentir tão bem, por ir a um funeral feliz e contente, mas achava que não seria humano refutar tal estado de espírito. Afinal, ele acabara de descobrir o amor e o amor acabara de os descobrir a ambos, a ele e a ela. Há dias de sorte na vida de um homem.
A única coisa que ainda lhe dava forças para enfrentar aquele malfadado funeral era saber que iria encontrar a sua amada horas depois. Essa certeza transmitia-lhe razões suficientes para desprezar o sentimento de angústia inerente a este tipo de “celebrações” católicas. Faltava tão pouco, mas tão pouco tempo, que os minutos queriam transformar-se em horas e as horas em dias, tal e qual como nos livros chatos e sem qualquer conteúdo cultural que os fingidos intelectuais, novos-ricos, liam antes de irem para a cama.
Choros, gemidos, lágrimas e soluços. Enfrentou tudo isso com a cabeça bem levantada e saiu do cemitério, em direcção ao carro, seguro do seu destino e do seu amor, do amor que ia deter em si, para sempre, daqui a alguns míseros instantes. Faltava já tão pouco!
Entrou no seu companheiro de longas viagens e, sem demoras, fez-se à estrada. Seguiu. Estava já a sentir o aroma do seu perfume, daquele perfume que mulher nenhuma conseguiria em tempo algum envergar, só ela. Seguiu. A sua cabeça explodia num misto de sensações prazenteiras e simultaneamente impetuosas. Seguiu. O seu coração disparava de tal forma que tinha até medo que abandonasse o seu peito e, em tom de vingança pelos anos preso e desprezado dentro de uma prisão de ossos, se entregasse a uma qualquer outra jovem, daquelas muito brancas, muito puras, muito virgens, mas que já não sangram. Seguiu.
Chegou. A chuva persistia, não queria dar tréguas. Ele estava já habituado. A vida tinha sido assim com ele, a partir do primeiro dia em que se conheceu. Desde pequeno que admirava os pássaros e toda a sua coragem para voar para lá do alcançável...nunca ele tinha podido voar. Desde pequeno que sonhava em conhecer novos países, novas gentes e novos costumes...nunca ele tinha conquistado aos seus pais a liberdade necessária para conhecer solo para lá de Itália, de Florença. Desde pequeno que lutava para ser um artista, um escritor, um homem livre na sua plena criatividade...nunca ele tinha conhecido a palavra liberdade para além dos livros e das suas bafientas páginas, nem a criatividade para lá daquilo que os melhores professores em toda a Itália tentavam, sempre em vão, ensinar-lhe. E desde pequeno que se sentava, dia sim, dia sim, numa raquítica cadeira de jardim observando a casa dos seus vizinhos, em frente. A casa não lhe interessava, interessava-lhe, sim, aquela menina.
Esperou 25 longos anos de vida por aquela segunda-feira em que saiu de manhã e voltou um outro homem horas depois. Esperou 25 longos anos de vida para a ter, para se terem. Nunca tinha sido homem que bastasse para enfrentar o que a vida lhe atirava para o caminho, mas agora seria diferente.
Contemplando, debaixo de uma enxurrada incessante de chuva, a ponte onde, quase 24 horas antes, a sua amada deixara a sua alma escapar-se-lhe por entre o leito de um rio que não conhecia seca desde aquela segunda-feira, Genaro resolveu lutar. Prometeu que não seria o mesmo, que não deixaria a vida fugir-lhe. Não.
Seguiu. Chegou. Não era bem aquele o sítio onde eles tinham combinado, sete dias antes, casarem-se para nunca, nunca mais voltarem. Mas ela valia a pena. Afinal, ele havia esperado 25 demasiado longos anos para amar aquela Beatriz. O salto era, apenas, uma questão de curtos segundos.

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