18 de junho de 2010

Quando "o" português morre

Já terá o mundo parado para pensar sob que alicerces desempenharíamos todas as nossas funções e complementariedades sociais sem termos a possibilidade de usufruir de uma base cultural forte?
Será justo afirmar que o dia-a-dia da humanidade se destaca pela fruição ou pelo gozo, pelo simples gozo, de se valer e de se reconhecer nos seus escritos, nas suas sonoridades, nas suas palavras, nos seus feitos, nas suas afirmações culturais?
Que integridade encontra um povo, este mesmo povo português, na sua irredutível procura por um nada cheio de muita coisa? O que detém das suas indestrutíveis e corajosas demandas por conquistar significados e conceitos que enalteçam "as armas e os barões assinalados" mundo fora e país adentro?
O que procura o mesquinho português no meio dos seus trocos e das suas gavetas cheias de refugiadas e escondidas memórias? O que quer "ele" quando afirma que construiu parte do mundo, descobriu metade do globo, conquistou um terço dos povos e levou avante a sua língua, o seu aspecto, as suas tradições e, acima de tudo, a sua religião através das valiosíssimas e íntegras Cruzadas?
O que me foge quando tento julgar o meu país, o meu povo, o meu vazio e a minha sensaborona azia de ter tudo na mão e de tudo ter deixado fugir ao longo dos séculos? O que me falta quando me julgo? O que se me esconde quando aponto o dedo àqueles que fazem os possíveis e os impossíveis para recolherem aos seus aposentos, para se refugiarem nos seus estrondosos falhanços e para dormirem bem tapadinhos sob as suas cobertas de prepotente indiferença? Talvez, em perspectiva, me falte aquilo que tenho de sobra: frontalidade.
Impossível será o ser humano encontrar em si uma brilhante capacidade para a aprendizagem, para o reconhecimento do erro e para a consequente tomada de sinceridade no dia-a-dia. Mas fazer dessas condicionantes explicação para a constante apatia pela qual nos arrastamos é desumano. É errado. É inconsequente. É, por fim, aceitável.
Nunca será grande o povo que releva a sua grandeza para o desaparecido, para o simplesmente memorável. Tudo isto se explica porque na memória nem tudo cabe e nos livros de História poucos olhos cabem. E quando findar? E quando nos esquecermos do quão grande fomos? E quando eu não me interrogar mais do porquê de me ser difícil criticar o meu povo? E quando eu tiver orgulho em desdenhar da bandeira que já nem mais à suavidade da brisa se faz dançar? Será aceitável também?
Desapareceu um homem que falava em português, que escrevia em português, que sonhava em português, que se emocionava em português e que vivia em português. Morreu um homem que vivia, do seu modo, Portugal. Quis uma das suas badaladas personagens, um tal Deus, que este fosse espalhar pensamentos, polémicas e verdades inconvenientes entre aqueles que já não vêem, já não ouvem e já não vivem. Existirá, porventura, sofrimento maior do que perpetuar na morte a sofrida jornada de uma vida? Mereceu Saramago escrever para mortos que de forma tão bela e natural se chamam e se fazem passar por vivos?
Terá Saramago "atirado" tão ao lado quando afirmou que perpetua perante os nossos olhos "a paz podre e a apatia geral"? Que erro tão grande comete o homem que vira costas à sua pátria quando a sua pátria faz a diligência de, desde logo, o abandonar? Que fez Saramago? Não foi português? Não falou bem a língua? Não a escreveu segundo os correctos parâmetros? Ou tê-la-á, por outro lado, escrito e falado da melhor forma?...
Qual é a forma mais certa e certeira de se ser nacional? Qual é a equação que nos permite afirmar que Portugal não é mais aquilo que nunca chegou sequer a conseguir ser, sem nos vermos a braços com uma pública ofensa à integridade do nosso país e dos nossos costumes? Ser português será assim tão pesado para que não possamos desprender-nos, por um segundo que seja, das nossas cegueiras e, dessa forma, vermos com os olhos de ninguém aquilo em que nos vamos imprudentemente transformando? Não serei eu português se criticar o meu país, da sua base ao seu todo? Espera-se o desprezo para todos aqueles que querem mais e melhor para um Portugal que ninguém realmente quer? Não terá Saramago sido um verdadeiro português, "o" verdadeiro português, quando cuspiu no prato que não tinha mais orgulho em alimentá-lo? Que tormentas não terá "o" verdadeiro português enfrentado para esquecer aquilo que nunca terá esquecido?...
Um dia levantar-nos-emos das nossas pútridas camas e choraremos por tudo aquilo que exigimos dos outros, mas que nunca chegámos a ter de nós mesmos. Um dia o respeito e o apreço que esperamos de outrem não o encontraremos nem nas nossas gavetas, nem junto dos nossos contados trocos. Um dia talvez tenhamos a dignidade suficiente para nos dobrarmos, mas sempre de cabeça bem levantada, perante um homem que tenha a coragem para dizer o que pensa e o que lhe vai na alma. Um dia encontraremos neste nosso enorme nada uma medida, um ajuste, uma melhoria...e talvez nesse dia notemos que esse mesmo ajuste tinha sido discutido, anos e anos atrás, da forma mais corajosa possível, por um velho calvo e perdido no meio das suas loucas pontuações e devaneios metafóricos.
O homem que procura a discussão, o diálogo e o raciocínio conjunto não procura a destruição do seu país ou do seu povo...talvez procure, em vez disso, preencher um vazio, já por si, tão cheio de nada. Tenhamos primeiro orgulho nos nossos e só depois lhes cuspamos em cima.


A morte engrandece para todo o sempre os para sempre esquecidos