8 de março de 2010

Portugal e a Greve Geral

Deu-se no passado dia 4 de Março, quinta-feira, a grande Greve Geral dos trabalhadores da Função Pública. Os congelamentos salariais, as alterações ao regime de aposentação, a má aplicação do SIADAP (Sistema Integrado de Avaliação do Desempenho da Administração Pública) e a manutenção de um regime de mobilidade especial são os motivos que estão na base do descontentamento dos trabalhadores e que os levaram a adoptar a Greve como forma de luta.
Escolas pararam, universidades funcionaram a meio-gás e dezenas de serviços públicos estiveram inactivos durante mais de 24 horas, já que os trabalhadores da recolha de lixo abandonaram os seus postos às 22 horas do dia 3, assim como os funcionários do Hospital de São José que optaram por "encerrar o expediente" pouco depois, às 23 horas.
Saí então à rua. Impossível seria não sair, até porque a primeira coisa que vi mal liguei a televisão nessa bela manhã, ainda com olhos ramelosos, foi a atitude desprezível e revoltante de um agente da autoridade, que insultava, alto e bom som, todos os grevistas que estavam à porta do São José na noite anterior. Havia algo a fazer e, acima de tudo, algo a mostrar. Quis então dar o meu parecer, expor, segundo os olhos de um jovem jornalista, aquilo que se passou realmente na área metropolitana de Lisboa em consequência desta greve. Ganhei coragem e, munido de máquina fotográfica, gravador, caneta e bloco de notas, avancei sobre essas ruas que Pessoa e tantos outros poetas um dia cantaram. Porra, como adoro a simplicidade desta profissão!
Queria conquistar um lado mais humano para a história, um lado que mostrasse o nosso pequeno Portugal e os seus pequenos portugueses, nós. Optei por ouvir e dar a conhecer as opiniões de todas as pessoas que, simpaticamente, me disponibilizaram algumas palavras em bem de algo que não lhes dizia o mínimo respeito. Soube-me bem, posso desde já acrescentar.
A "Loja do Cidadão", nos Restauradores, foi a primeira paragem do dia. Eram 14h30 e Lisboa passeava-se debaixo de um sorridente, e nada tímido, sol. Entrei e deparei-me com o habitual cenário caótico: filas por todos os lados, cadeiras totalmente ocupadas e utentes a dormir, vencidos pelo monstro da espera e da exaustão. Com quatro simples perguntas, previamente definidas, dirigi-me a uma senhora, que, tal como tantas outras, esperava a sua vez para ser atendida. Rapidamente me apercebi, por entre as suas inocentes mas determinadas palavras, que se tratava de uma imigrante, apesar de não me arriscar a determinar o seu país de origem. Nunca tive muito jeito com sotaques ou pronúncias, entenda-se. Meio atrapalhada, por não conhecer os principais motivos para a paragem dos trabalhadores da Função Pública, disse-me apenas que não tinha "motivos de queixa" e que tudo estava a "funcionar devidamente". Quis deixar também, um pouco em tom de discórdia, a sua incompreensão para com todos aqueles que, mesmo informados pela Comunicação Social na véspera, resolveram deslocar-se à referida Loja para tratarem dos seus assuntos e papeladas. "Foram informados. Já se esperava esta paragem".
Agora, o que eu realmente não esperava, de todo, era uma homogeneidade quase que total em todas as respostas que obtive. Foi algo assim do género: "Não tenho conhecimento de nenhuma greve!"; "Nem sabia que estávamos em greve!"; "Nem sei o porquê dos funcionários públicos terem parado hoje!". Preocupante? Até a própria imparcialidade me permite dizer que sim.
Vivemos, ao que parece, num país com graves défices de atenção, mas que tem sempre uma qualquer resposta debaixo da língua. Chama-se, se me perguntarem, "ratice". Digo isto porque, ora não sabemos, ora pouco nos interessa, mas temos sempre um parecer definido e pronto a debitar. Ou levava com um "não concordo nem discordo desta paragem", noção claramente vaga, ou com um "não concordo com greves em circunstância alguma! É a trabalhar que se resolvem os problemas e não a fazer férias forçadas", conceito questionável, mas sempre presente na mente de muitos portugueses, como era o caso de mais uma senhora, que não hesitou em assim me responder. "Esta batalha já a perdi", pensei eu. Cheguei mesmo a balbuciar um "este povo não me diz pão!". Mas lá ganhei juízo, arrumei a tralha e meti-me a caminho do Departamento de Segurança Social no Saldanha.
Cheguei e fui imediatamente envolvido, ainda que de mansinho, por um sentimento nada jornalístico. Estava a aperceber-me da real paragem dos serviços. Começava a inteirar-me de que não era só fogo de vista, afinal o sector público tinha parado mesmo. E, raios, sentia-me contente por ver alguma união entre trabalhadores. Mas eram já 15 horas e o tempo continuava a não me querer fazer o favor de parar, nem por um bocadinho.
De gravador em riste, e que nem um simpático intruso no meio daquelas poucas pessoas, resolvi falar com algumas. Perguntas semelhantes, descontracção óbvia...cada vez mais óbvia. Comecei a observá-las e a tentar recolher nos seus actos e palavras soltas uma possibilidade para as conhecer e para conhecer o que pensavam sobre o "tal" tema. Achei intrigante, logo de início, o facto de uma jovem, com alguns anos a mais do que eu, me ter vetado a possibilidade de a entrevistar visto não estar no país "há mais de três meses". Intrigante porquê? Porque no exacto minuto anterior levantou a sua monocórdica voz, a mesma com que me deu um "não", para se insurgir contra a demora nos serviços, demora essa provocada pelo monstro da greve, que, diga-se de passagem, nunca nos cai nada bem nas horas de almoço. Falei depois com outra imigrante, que não teve problema algum em revelar-me a sua ignorância quanto ao assunto, mas que insistiu em dizer-me, por várias vezes, que "estava tudo normal e a funcionar muito bem".
A minha cabeça já não encontrava um único ponto de concordância, no meio de tanta opinião, e ainda ficou mais confusa após falar com um quinquagenário, este de nacionalidade portuguesa. Tentei encontrar algo de novo nas suas palavras, mas soou-me ao mesmo. Àquele mesmo que ouvimos nos cafés, nos transportes, na rua...o "Tuga". E só eu sei o quanto odeio recorrer a essa mesma expressão, portanto apreciem o meu claro desespero. “Se por tudo e por nada se faz uma greve e há trabalhadores que querem trabalhar e os piquetes não deixam, algo está mal!”, foram as suas palavras. Aquele mesmo homem que tentava roubar do senso comum algumas respostas para de bandeja me as dar, estava agora a questionar, de forma muito séria, as metodologias dos sindicatos e seus filiados. A experiência ter-me-ia dado a possibilidade de lhe responder à letra, sem tirar nem pôr, mas segui o guião e fiquei-me pelo simples, o que admito ter sido tarefa complicada. Queria sair dali o mais rapidamente possível, o ar começava a parecer-me rarefeito e estava com medo de ser interpelado por um segurança a qualquer momento. Mas a frustração de me ter calado perante a resposta referida acima só me deu força para avançar para um balcão, o único ocupado por um funcionário, e, mesmo sem senha ou autorização, entrevistar uma das únicas trabalhadoras ali presentes. Em rápida conversa, e mostrando algum interesse em responder às minhas perguntas, explicou-me que nenhum serviço havia sido "devidamente reposto", mas que, mesmo assim, ninguém se podia queixar de atrasos. Acabou, seca e concisa, dizendo que não fazia greve porque "o ordenado não chega para isso". Saí. Estava mais que na hora de ir à Avenida dos EUA ver como se encontrava o movimento de utentes, novamente na Segurança Social.
Eram já 16 horas, arredondando números, e, mesmo não percebendo muito bem porquê, fui mal recebido. Mal me identifiquei como "jornalista", a expressão do segurança que me interrogava mudou. Já sabia qual era a sua resposta, mas mesmo assim fez questão de me dizer a tão conhecida frase de recusa neste nosso país: "Não tenho autorização hierárquica para o deixar entrar". "Deixa estar, miúdo!", tentei reconfortar-me. Virei costas, e, de cabeça sempre bem levantada, senti-me orgulhoso pelo serviço público que estava a prestar ao meu país...ou a mim mesmo. Não sei quem me lê, nem se me lêem e, muito sinceramente, pretendo continuar a escrever e a tentar passar a minha mensagem, seja ela qual for.
Depois de ter sido simpaticamente desprezado pelas sedes sindicais da CGTP e UGT, à qual agradeço, apesar de tudo, por me ter enviado um documento oficial com os primeiros números da adesão à greve, que adianto, desde já, terem rondado os "75% e os 80%", dirigi-me, finalmente, ao Hospital de Santa Maria, junto à Cidade Universitária. Cheguei lá já perto das 18h30 e senti que havia perdido a minha hipótese de reportagem no local. Utentes nem os vi...restava-me apenas entrevistar algumas funcionárias que tinham optado por ir trabalhar.
Contrariando o que parecia ser já habitual neste meu dia, ou seja, um mar de respostas vagas, todo ele desejoso de me ver afogar nesta incerteza de conseguir ou não uma boa reportagem, meti-me à conversa com duas simpáticas e acessíveis trabalhadoras. Senti convicção e verdade nos seus depoimentos e descobri, simultaneamente, que aquele sentimento do qual falei acima, da união entre trabalhadores, talvez não estivesse assim tão presente, pelo menos na mente destas duas senhoras. A primeira disse-me: "Concordo com os motivos de greve dos meus colegas, mas optei por não aderir. Fiz sempre greves, até hoje, e não acho justo perder um dia de trabalho quando há colegas que continuam a não querer aderir a este tipo de iniciativas”. Fiquei triste por ouvir tal coisa, mas achei que seria só mais uma opinião. Tal pensamento simplório desapareceu quando me desloquei até à saída do mesmo hospital e ouvi, da boca da segunda funcionária, que havia tomado a decisão de não aderir à greve, pois tinha "medo de repercussões a nível laboral", visto ser uma contratada e não fazer parte dos quadros.
Ser jornalista tem destas coisas. Ontem pensava, meio que soterrado no meu Mundo, que há sempre um lado bom e um lado mau. Neste tipo de casos, o lado mau seria sempre o patronato e o Governo, ambos em associação mútua, e o lado bom seriam, sem qualquer dúvida, as plataformas sindicais. A verdade é que tanto quis sair para a rua, tanta vontade me deu de dar voz àqueles que nunca a têm, que acabei por me desmembrar em todo o tipo de conclusões. Destaco uma: Mais importante do que encontrar "lados" é encontrar respostas para o povo, para esta sociedade. Não quero acabar de forma previsível e dizer que Portugal está muito mal e que é preciso mudar. Não são precisas reportagens para se perceber isso. São precisas reportagens, sim, para se perceber que, enquanto sindicatos e governo lutam taco a taco para ver quem mais terreno conquista, as pessoas continuam à espera. Esperam por uma resposta, por uma melhoria nas suas vidas, há até as que esperam por uma vida...e ela não chega. Estes tubarões guardam as respostas para os seus debates políticos, para as suas tomadas de posse e para os seus confrontos frente-a-frente e nós esperamos. A espera é até secundária, o que preocupa é a incapacidade, cientificamente provada, que o ser humano tem em esperar por algo. Necessitamos de algo que nos ocupe, que nos mate o tempo e que não nos faça desesperar. E aí entra a futilidade. Aí entra a preocupação constante com todas aquelas coisas que nunca farão de nós nada, mas que fazem aquele momento, aquela espera mais fácil de aguentar. É aí que entra a nossa resposta, a resposta forçada, a um país que só é nosso de aluguer, que só nos dá um sítio onde dormir e por onde deambular. É aí que percebemos o vazio em que estamos e é aí que nos perdemos para a rotina e para o ilusório. Não sabe bem, mas sempre sabe a nada...e nunca o nada soube tão bem...