29 de agosto de 2010

Um "Mudasti" a mais no dicionário


Mudasti:
Português, expressão idiomática, o mesmo que “muda de iced tea (trad: muda de chá gelado)”. Imperativo, 2ª pes. sing.. No sentido lato: muda algo na tua vida; evolui; muda as tuas ideias; corta com o passado; persegue os teus sonhos; mantém uma atitude positiva.

É um tema badalado, badalado por demais. Já todos ouviram falar dele e já ninguém encontra mais paciência para tais reptos, para tais discussões "sub-linguísticas" que fazem do nosso dia-a-dia, das nossas conversas e das nossas ideias vocabulares um sem-sentido de trocadilhos, uns espécimes sem qualquer espécie. Confuso? Confuso fico eu ao tropeçar em tanto chorrilho de asneirada e de pontapés na gramática e no léxico que me pertencem, sem nunca me terem sequer pertencido.
Apelidam-se de visionários, de vanguardistas e de justiceiros. Levantam suas cabeças, fazem-se valer dos seus intelectos intocáveis e avançam, país e sociedade adentro, sem medos, sem peneiras e sem vontade de olharem para trás. A maneira como falam transmite calafrios, deixa-nos receosos, mas sedentos de algo mais para o futuro. São eles que têm a coragem de se impor perante todas as verdadeiras injustiças deste mundo para, e de peito bem cheio, gritarem ao universo que, por eles, já chega. Querem algo mais. Querem aquilo que lhes foi roubado. Querem aquilo que a moral e os bons costumes lhes tiraram. Querem hoje ver o sangue daqueles que ontem nunca tiveram a coragem, a audácia e o desfrute de, e com os punhos bem fechados e ávidos de justiça, reclamarem aquilo que sempre foi nosso, mas que nos esconderam. Aquilo que a Humanidade sempre relevou para junto das nossas conquistas, das nossas batalhas e das nossas aventuras...do nosso Portugal!
Mas qual além-mar, qual quê?! A História deste país faz-se debaixo de um sol que nunca teve sequer coragem, com toda a sua bela e forte resplandecência, de ofuscar as nossas cruzadas, as nossas vitórias. Mas até a descoberta e a conquista do mundo nos parece pouco ao lado daquilo que hoje, e depois de tantos séculos de privações, vamos conseguindo erguer juntos. Portugal encontra-se agora, e quem diria (!), em pleno século XXI, como o expoente máximo do esforço colectivo, da beleza exposta numa nação que se desafia e que não arreda pé até conseguir aquilo que quer, aquilo que é seu por direito! Juntos, e desafiando mesmo as memórias que os livros de História nos arrebatam por entre as suas páginas, damos as mãos, afinamos as gargantas e, qual alcateia de ferozes felinos, rugimos aos quatro cantos do mundo aquela máxima que há muito nos tentaram tirar da forma mais vil e cruel possível! Silêncio se faz, mas não mais para cantar o Fado. Hoje gritamos: Mudasti!
E pensava eu que o Acordo Ortográfico e as novas reformulações lexicais não eram, por si sós, problemas suficientes para a minha cabeça e para a minha independência escrita e criativa. Num futuro lá muito ao longe, talvez até nem venham a ser, mas até os limites se limitam a si mesmos e aquilo a que assistimos hoje nas nossas televisões, quase que diariamente, é uma afronta ao verdadeiro significado do "Ser Português", se é que tal conceito ainda existe. Se, por um lado, nos deparamos com a introdução de um novo código linguístico no nosso entrosamento social e, com toda a razão, o associamos a um afrouxamento das barreiras que possam ainda existir entre Portugal e os negócios perpetrados com a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), conceito este que, e no meu entender, sentido não faz, por outro lado, temos o devaneio instintivo e selvagem de uma empresa que se apodera do sentido do Marketing e da Publicidade para cortar cabeças e decepar os membros essenciais desta língua com que brinco desde pequeno e à qual dou o nome de "Português de Portugal".
Se por vezes, e os meus leitores sabem do que falo, primo pela subtileza e ironia, então hoje apago esses mesmos conceitos da minha índole criativa e extravagante e encho a boca para dizer mal destes mesmos atentados que me vou deleitando em observar ao longo dos tempos. Há quem lhe chame "evolução". Eu opto antes por "estupidez" e aponto os meus dedinhos calejados por este mesmo teclado à Nestea por ter tido o desrespeito de tentar "impor uma nova ordem lexical" (tal como referido no site que apresenta devidamente os propósitos desta mesma intervenção publicitária). Dizem eles que Mudasti é de tal forma uma palavra importante que até o próprio "significado já está enraizado na cultura popular portuguesa". Já tinham dado um valente pontapé na gramática, agora dão uma arrebatadora cabeçada na cultura. Por fim, e como se não bastasse, descredibilizam ainda a intemporalidade da nossa língua e a sua capacidade de perpetuação ao longo da História, alegando que "hoje, são imensas as palavras insignificantes, com sentidos imperceptíveis, como 'opidano', 'ingresia' ou 'exaurir' que se mantêm presentes nos dicionários da Língua Portuguesa", motivo esse que permitirá então a qualquer mero mortal, com ou sem massa encefálica, impingir a anexação de uma nova entrada no Dicionário Oficial da Língua Portuguesa. Mas que bem!
Acabo apenas com uma reflexão: se é a liberdade de expressão que me consente esta tão solene crítica a esta mesma empresa incongruente, então seria eu um cidadão irresponsável e inconsciente dos direitos presentes na minha sociedade e no meu país se exigisse ou aconselhasse, assim meio ao de leve, a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) a impor o término destes mesmos anúncios que de crime servem à minha própria liberdade de expressão como a conhecia ainda há coisa de uns meses?
Há que perceber que são pequenos desvarios e delírios como estes que passam por cima do respeito a algo tão grande e essencial como será, neste caso, a nossa língua, as nossas raízes. O Marketing não pode poder tudo. Não.