8 de julho de 2010

Toda uma vida no meio do nada



Saí de casa. Achei, pelo melhor, que talvez um passeio me acalmasse a intranquilidade de espírito. Assim, fiz-me à estrada. Era cedo, demasiado cedo, mas trabalho havia para fazer e muita coisa se mantinha assim por dizer, por falar e por contar. Quis assumir a responsabilidade e dar voz àqueles que se vêem calados, ouvir os que nunca chegaram sequer a emitir um som e compreender todos os que não procuram mais compreensão... isto porque ela nunca chegou e agora, tão simplesmente, já vem tarde.
Encontrei então, na Cova da Moura, uma oportunidade de fazer algo melhor, de tentar chegar mais longe. Roí-me por dentro, fiz-me de forte e avancei: era medo, tudo aquilo que sentia. Era receio de entrar no bairro dito como o mais perigoso em todo o Concelho da Amadora. Era uma espécie de reacção amedrontada e claustrofóbica perante aquela liberdade e alegria que circulava entre todos os seus 6500 habitantes, habitantes esses que me olhavam agora e não me viam, não me entendiam, não sabiam o que queria dali. Em 30 e poucos anos de existência talvez a Cova da Moura nunca tivesse visto um jornalista daqueles à séria, interessados não em dar que falar, mas em falar. Esse era eu, ou pelo menos tentava.
Tinha acabado de entrar e, para mal de todo aquele meu nervosismo que lentamente se ia apoderando desta reportagem, não conseguia manter um fio de raciocínio. Apercebi-me, a certa altura, de que não sabia mais por onde estava a caminhar. Aquele não era o meu sítio, não era a minha história e muito menos seriam as minhas ruas. Não. As minhas ruas não têm graffiti nas paredes. As minhas ruas não albergam pinturas de lembrança e de esperança numa terra prometida...mas nunca conseguida. Não. As minhas gentes não me olham fixamente nos olhos quando me passeio. As minhas gentes não fazem chouriços no meio da estrada. Não. As minhas casas não têm a porta aberta para toda a gente poder entrar. As minhas casas não celebram o espírito da minha cultura fazendo ecoar, alto e bom som, a música tradicional do meu país e do meu povo. Não. A minha história não conta histórias de festas em pleno dia, em plena via pública e em plena paz e união. A minha história não conta histórias de um povo que abandonou a sua terra para agora subsistir através de cabeleireiros, restaurantes e snack-bars. A minha história não conta histórias de um continente que nunca chegou sequer a ter História. Não. Nunca.

Ainda meio perdido, qual peixe fora de água, olhei para as horas e inteirei-me de que estava já um pouco atrasado para a minha primeira conversa do dia. Os jornalistas chamam-lhe, caprichosamente, de entrevista, mas eu continuava a pôr em causa o verdadeiro objectivo desta reportagem, desta história que agora aqui passo a contar. Preferi colocar os meus intervenientes a meu lado, como meus iguais, e não os relevar, no meio dos meus escritos, para meros objectos de estudo. Precisava de ser diferente para uma diferente realidade poder expor. Simples e, ainda assim, complexo.

Depois de algumas indicações gentilmente cedidas por dois moradores e de alguns “bons dias!”, todos eles proferidos em alta escala decibel, envolvendo em si uma simpática e calorosa recepção que eu não esperava, lá consegui chegar à Rua do Vale. No número 17, logo do meu lado direito, erguia-se um vistoso e agradável edifício amarelo, cheio de vida, cheio de gente, cheio de histórias. Dá pelo nome de Associação de Solidariedade Social do Alto Cova da Moura (ASSACM) e guarda em si uma segunda casa para vários miúdos e graúdos residentes no bairro. Inicialmente conhecido como um Clube Desportivo, isto nos anos de 1980 a 1983, rapidamente este simpático imóvel ganhou o reconhecimento devido e passou oficialmente a Associação. Actualmente referenciada como uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) a ASSACM tem como objectivos a promoção da Igualdade, da Formação, do Desenvolvimento, do Desporto, da Cultura e do Recreio, tudo isto de modo a responder às necessidades mostradas pela população local, facilitando assim a sua inclusão ao nível social.

À minha espera tinha já Nuno Antão, um dos responsáveis pela Equipa Coordenadora da ASSACM, que me fez uma pequena, mas detalhada, visita guiada às instalações. Depois de ver a biblioteca, de passar os olhos pelos computadores do Ciberespaço, onde os jovens podem aceder à internet sem quaisquer custos, de observar os mais pequenos a divertirem-se no espaço “Nu Kre Brinka”, um parque infantil construído recentemente em parceria com a fundação Montepio Geral, e de estudar curiosamente o grande e imponente salão de festas, o Nuno informou-me de que a Patrícia Horta, a única Técnica de Reabilitação e Inserção Social na Associação, já me esperava. Entrei então numa das poucas salas que ainda não tinha visto e conheci a minha interlocutora.

A Patrícia já trabalha na ASSACM há mais de cinco anos, conhece bem os cantos à casa e era, por isso, a pessoa ideal para me explicar todo o trabalho idealizado e perpetuado por esta instituição na breve história da Cova da Moura. Enérgica, bem falante e claramente informada e esclarecida sobre tudo aquilo que dizia, referiu a certo ponto, em resposta a uma das minhas perguntas, que a Associação era uma espécie de ATL, “mas que agora se chamam CATL's, Centros de Actividades de Tempos Livres”. Definiu, passo a passo, quais as linhas de trabalho da Associação e falou um pouco sobre todos os seus intervenientes e respectivas funções: “Temos o Sector Administrativo lá em baixo. Depois o Gabinete Técnico, onde está uma Psicóloga, uma Técnica de Reabilitação e Inserção Social, que neste caso sou eu, e dois Técnicos de Serviço Social. Temos depois as salas e em cada sala há um professor de ensino básico e uma auxiliar. Logo a seguir vêm os dois professores de Educação de Infância, para o Pré-Escolar. Temos a Suely, de Psicologia, que é a que está no Centro Local de Acompanhamento à Integração do Imigrante (CLAII); as chefias que também são as mediadoras interculturais; temos o Landim que apoia na parte Administrativa e Contabilística e, por fim, a Éster, na Área da Sociologia, que vai acompanhando diversos projectos e actividades. Tudo isto sem contar com as auxiliares que tratam das refeições e da higiene das instalações”.

Funcionando como “um Centro Comunitário” e trabalhando “em prol do desenvolvimento do Bairro e da sua Comunidade”, a ASSACM trabalha junto de toda a população, sem olhar a idades. No entanto, as suas actividades centram-se, mais especificamente, no “apoio escolar, cujo horário de funcionamento se situa entre as 7h30, funcionando até às 9h”. As crianças são depois deixadas na escola e recolhidas novamente depois das 15h30: “Vamos buscá-los à escola e eles vêm para as nossas instalações. Ficam cá das 15h30 até às 20h. Durante esse tempo têm o lanche, o apoio escolar para os trabalhos de casa, têm actividades desportivas e têm também programas de competências básicas sociais e pessoais.” No entanto, a ASSACM vive, em grande parte, para as crianças ainda mais novas e fora da compreendida idade escolar: “Também temos crianças mais pequenas, os do Pré-Escolar, durante o dia todo. Estas são aquelas que não têm vaga nas creches, isto porque simplesmente não existem vagas”.

Continuei com o meu “bate” de perguntas, sem parar durante um único segundo que fosse, mas a questão das tais vagas não me saía da cabeça. Portugal já se vê a braços com esta situação há muito tempo, mas a problemática começa a ganhar contornos incompreensíveis: “É um problema geral, nacional. Apesar de ser obrigatório o Pré-Escolar, ainda não existem os equipamentos necessários e suficientes que possam apoiar a população necessitada” - contou-me a Patrícia. Não há portanto, e em semelhança a tantos outros casos no nosso país, uma oferta de equipamentos que cubra o normal crescimento populacional. No entanto, este é um problema que se tem vindo a solucionar no bairro graças à intervenção, em parceria, das associações que trabalham no terreno, destacando-se neste caso a ASSACM e o Moinho da Juventude. Quando questionada sobre a importância desta união entre as instituições, para que a dinamização da Cova tenha futuro à vista, Patrícia expôs um facto de ainda maior interesse: “Sim, trabalhamos em parceria. Tanto que até foi criada a Comissão de Bairro. Essa mesma Comissão é constituída por quatro associações: pela ASSACM, pelo Moinho da Juventude, pela Comissão de Moradores, a associação mais antiga, e pelo Centro Social e Paroquial de São Gerardo”.

É em conjunto e de forma solidária que estes “responsáveis” vão trabalhando por um futuro melhor no tal bairro mais problemático do Concelho da Amadora. É em conjunto que atraem, para as suas iniciativas, uma comunidade “com a qual é muito fácil de interagir, pois, ao contrário do que possa acontecer noutros bairros, aqui as pessoas interagem e participam muito”. E é dessa forma que “está, por exemplo, ainda a decorrer o concurso para o Plano Pormenor (PP)”, isto porque os habitantes continuam a insistir na requalificação urbana da zona, em prol do futuro do bairro e em prol das gerações vindouras. O problema é que se trata de um ”processo muito moroso” e que já se vem a arrastar desde a Resolução do Conselho de Ministros, lançada em 2005 e iniciada em 2006. Os governantes vão colocando algumas dificuldades a nível burocrático e todo o processo encontra assim obstáculos ao seu desenvolvimento: “Há algo que não podemos esquecer, nunca: este bairro é considerado um bairro clandestino, isto porque os seus habitantes foram edificando em terrenos que não lhes pertencem, que têm outros proprietários” – refere Patrícia. E é essa mesma questão que tem vindo a prender a Câmara e a dificultar os avanços desta mesma possibilidade de requalificação urbana. Tem-se até vindo a falar na possível expropriação dos terrenos privados da Cova da Moura, isto porque tem sido impossível entrar em contacto com os “verdadeiros” proprietários dos mesmos: “Estamos a falar de 16 hectares e não se reabilita um bairro de um dia para o outro! (...) Agora é esperar e ver como é que corre”.

Em jeito de conclusão, perguntei à Patrícia se ela tinha vindo a notar algumas diferenças fulcrais no bairro, principalmente no que toca à criminalidade. Pensativa, indicou-me de imediato que “elas [as situações] existem”, rematando simultaneamente “que não interferem minimamente com a vida comunitária do Bairro”. Defendeu ainda que existe um policiamento habitual da zona, mas “que a Comunicação Social ‘embicou’ para aqui” e que isso explicará, por sua vez, a contínua e constante mediatização de tudo o que acontece e não acontece no bairro. “A verdade é que uma pessoa entra aqui e sente-se simplesmente à vontade para percorrer qualquer uma destas ruas” - fechou Patrícia.
Se tal era verdade ou não, eu ainda não o poderia dizer. Entrei receoso, mas à medida que o tempo ia passando qualquer coisa ali me dizia que havia uma razão para medos não existirem. A verdade é que pouco tempo tive para sequer poder pensar nisso, pois mal me despedi da Patrícia fui ao encontro do meu segundo entrevistado (termo esse que continuo a não gostar de utilizar).

Desci as escadas e deparei-me então com o Celso Ruivo, um dos vários estagiários a tirar um curso na ASSACM nas férias do Verão. Recebeu-me com um simpático sorriso e conduziu-me até à biblioteca onde falámos durante pouco mais de um quarto de hora. Notei no Celso, desde logo, uma facilidade de diálogo muito interessante. Ainda que tímido, tinha as respostas todas bem na ponta da língua e sabia exactamente o que me dizer. Curto e conciso, mostrou-me que, apesar dos seus 16 tenros anos, almejava já a um futuro certo e cheio de oportunidades.

Celso vive com a mãe e com o irmão numa casa ali mesmo, bem na Cova da Moura. Foi lá que nasceu, cresceu e é lá que quer continuar a viver: “o meu desejo é continuar a viver na Cova da Moura. Sempre!”. Enquanto ajeitava o boné, sempre com a pala para trás, disse-me que estava a acabar o 9º ano e que, durante o período de férias, vinha para a ASSACM trabalhar: “Estou a tirar um curso de Auxiliar de Práticas de Acção Educativa e sugeriram-me vir para aqui, porque é mais perto da minha casa e já conheço as pessoas que aqui trabalham”. Parecia certo, demasiado certo de tudo aquilo que estava a fazer na Associação, e quando lhe perguntei qual a sua principal motivação para ali continuar a trabalhar, riu-se, baixou a cabeça e respondeu-me, sempre com muita calma: “São os miúdos”.

No entanto, Celso mostrou-me lentamente o quão ambicioso era. Parecia querer descobrir o mundo. Tudo bem que a Cova era o seu sítio, o seu lugar, o seu verdadeiro “paraíso”, usando as suas próprias palavras, mas não queria isso dizer que fosse uma “ilha” na qual navegasse para bem longe do exterior ou da realidade: “É óbvio que saio [do bairro]. Não passo a minha vida cá dentro!”. Muito interessado na arte dos motores, rudimentarmente chamada de Mecânica, revelou-me que, para o futuro, estava a pensar vir a tirar “um curso de três anos de Mecânica e simplesmente vir a seguir por esse ramo”. Achei interessante, mas não pude deixar de perguntar em que é que isso se assemelhava ao seu actual trabalho: “O meu trabalho aqui é ajudar os mais velhos a fazerem os seus trabalhos de casa, isto mais à tarde. De manhã estou com os pequenos e com eles é costume desenvolvermos certas actividades, através das quais fazemos o esforço para que possam conhecer alguns instrumentos musicais e tantas outras coisas”. Ou seja, semelhanças, essas, não existiam. Riu-se. Revelou-me apenas que tinha uma enorme paixão por carros: “Sempre gostei de carros, desde pequeno. Sempre gostei de ver pessoas a mexerem em carros e, por curiosidade, gostaria de vir a fazer a mesma coisa”, e quem era eu para questionar tal dedicação? Na vida nem tudo se explica...

Habituado ao contacto com o exterior, disse-me também que nunca tinha mentido acerca das suas origens. Tem orgulho em viver na Cova da Moura e não o esconde de ninguém: “Não tenho de esconder. Não somos todos iguais. Se alguém se meteu no mundo do crime foi por opção...Nada tem a ver com o sítio onde vivo”.

Já quase em altura de despedidas, discutimos os problemas da marginalidade dentro do bairro. O Celso revelou-me que as coisas tinham vindo a mudar para melhor nos últimos anos e que “vários jovens têm vindo a ser encaminhados para os mais diversos cursos”. Na sua opinião esse é um factor de mudança, um factor que vem trazer uma ocupação, um sentido na vida dos mais novos tornando-os assim “mais calmos”.

Pedi-lhe apenas que deixasse umas últimas palavras, palavras que governante nenhum virá algum dia a ouvir, mas que mereciam sair daquela jovem boca, daquele jovem coração: “O que diria?... Bem, que eles [os governantes] não pensem que precisamos de ajuda. Precisamos, apenas, de algum dinheiro para tornarmos a restauração do Bairro possível e pouco mais. A Cova está perfeita”.

Perfeita ou não, a Cova “falava” (!), estranho acontecimento que nunca a Comunicação Social achou por bem me transmitir. “Lá anda-se aos tiros, não se perde tempo com palavras”, pensava eu, estúpida e ingenuamente. Despedi-me do Celso, saí pela porta da frente e virei costas a um dos muitos edifícios construídos, tijolo a tijolo, pela população ali residente. Ali conheci pessoas e ouvi coisas que mudaram a irrisória maneira de me ver no mundo. Afinal há quem viva numa casa totalmente construída por si, mas que não é sua: “pano para mangas”, já dizia a minha avó.

A próxima paragem remetia para a Travessa do Outeiro, mais precisamente para a Associação Cultural do Moinho da Juventude, instituição creditada como Centro de Formação pelo INOFOR (Instituto para Inovação na Formação). Referido como um dos principais pólos evolutivos dentro do bairro, o “Moinho”, como é habitualmente apelidado, nasce de um trabalho informal de animação de crianças, organização de mulheres e luta pelo saneamento básico, nos primeiros anos da década de 80. Ganhando o estatuto oficial de Associação em 1987, esta instituição alberga, em semelhança com a ASSACM, quase uma centena de crianças por dia e cria actividades para mais de 400 jovens, dinamizando um "Centro de Informação Jovem", um "Espaço Jovem", "Círculos de Debates", uma Biblioteca Juvenil, Apoio Escolar para Adolescentes, Cursos de Iniciação à Informática e um Núcleo Desportivo em que participam cerca de 300 jovens nas modalidades de Futebol 5, Basquetebol, Ginástica e Grupos de dança de inspiração africana. Para além de tudo isto cria ainda diversos postos de trabalho e possibilita outras tantas oportunidades de formação, desenvolvendo cursos e estágios, assim como acontece na anteriormente referida ASSACM.

Ao chegar, deparo-me com as inúmeras pinturas infantis espalhadas pelas paredes. Sabe bem ver o mundo marcado pela inocência e criatividade dos mais novos, mas sabe ainda melhor descobrir, lá no meio do tal bairro mais problemático da Amadora, que, à parte de um Portugal que se vai descurando no seu Ensino e na sua Educação, aqui ainda existe uma comunidade que acredita no seguimento, que acredita no amanhã e que luta, com os escassos recursos que tem, por uma vida digna e honesta assente num futuro matreiro e em nada promissor. Soube bem apreciar todas as formas de arte urbana, principalmente o simpático e sempre presente primeiro quinteto do poema de António Gedeão, “A Minha Aldeia”. O “Moinho” criou, do nada, um espaço atractivo, bonito e que serve toda uma comunidade. Mas de onde vem tanta força, tanta inspiração e tanto sentido de mudança e melhoria? Queria ouvir alguém, alguém um pouco mais velho e experiente, alguém que conhecesse a Cova da Moura há largos anos, alguém que tivesse visto os últimos anos, as últimas evoluções e os últimos marcos que se foram desenhando lentamente por entre este acumulado de travessas, ruas e ruelas. Foi com esse propósito que encontrei Ermelindo Quaresma.

Chegado ao “Moinho” subi as escadas azuis que dão para os serviços administrativos e respectivas salas e lá encontrei, sempre de volta do seu fiel computador, a minha terceira conversa, ou entrevista, se assim preferirem. Natural de Cabo Verde, com 37 anos de idade e actualmente a residir em Sete Rios, Ermelindo é um dos vários exemplos perfeitos do imigrante africano que rumou a Portugal por melhores condições económicas, por sede de justiça e democracia, por uma vida digna...por uma vida. Veio para Portugal em 1991, com 19 anos, proveniente de Angola, país onde viveu desde os 10 anos. Em princípios de 1993 chega à Cova, bairro onde habita até 1999, começando, a partir desse ano, a fazer a sua vida noutros locais perto da Linha de Sintra, como seja Queluz. Actualmente, e como foi acima referido, vive num apartamento em Sete Rios com a sua mulher e com os seus três filhos.

Ermelindo veio para a Cova da Moura em busca de uma habitação, queria “arranjar uma casa para morar”. Chega de Angola com o 9º ano e começa a trabalhar na construção civil. Surge entretanto a hipótese de fazer o RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) que lhe dá equivalência ao 9º ano português. Posteriormente chega ainda a fazer um outro RVCC de equivalência ao 12º ano. Quer continuar a estudar e, quem sabe, vir a tirar uma licenciatura: “Foi um sonho meu desde criança, mas depende, e em muito, das condições financeiras”.

Cansado do quotidiano, resolve, a certa altura, abandonar a construção civil e é nessa fase que, através de um emprego temporário, consegue ficar a trabalhar no “Moinho”: “Na altura estava a trabalhar na construção civil e queria mesmo mudar de trabalho. Já frequentava a associação como voluntário desde 1994 e era responsável pelo 1º grupo de Hip Hop. As pessoas do bairro já me conheciam e na altura precisavam de um animador para a sala de informática e eu vim”. É também nessa altura que Ermelindo descobre uma das suas três paixões: a Informática; a segunda remonta para a Acção Social e para a sua experiência no “Moinho”: “Eu trabalho aqui há 6 anos e estou na Área Social. Isto é algo que vou aprendendo dia-a-dia”; e a terceira explode na sua vida quando começa a fazer uns “cursos, tipo Web-design”, passando então o design a fazer parte integrante do seu dia-a-dia e das suas paixões. Quer fazer um curso no futuro, mas por agora contenta-se com um emprego no qual conjuga essas três vertentes: “Aqui lido com pessoas, dou aulas de informática e faço trabalhos de design!”. No entanto anuncia, alto e bom som, que gostava, um dia, de vir a trabalhar por conta própria e que é muito provável que não venha a acabar a sua carreira profissional pela Cova da Moura: “Acho que não me reformo aqui [no bairro], mas desejo ficar até que o processo de requalificação esteja concluído ou até achar que o meu trabalho contribui para as pessoas”.
“Isto já esteve pior, antes só 2 ou 3 ruas é que eram asfaltadas, por exemplo. Agora não. A Câmara melhorou, e em muito, o serviço. Há muitas coisas para fazer aqui e queremos que sejam os moradores a fazê-las, isto porque há muito desemprego e assim damos-lhes oportunidades” – foi desta forma que Ermelindo abordou as possíveis melhorias a realizar na Cova. É preciso integrar os próprios moradores no processo de dinamização do bairro, mas certo será dizer que eles já o fazem, e da melhor forma possível. Prova disso é a capacidade de união e entreajuda entre os habitantes, factor que Ermelindo destacou desde o princípio da nossa conversa: “Se tu precisares de apoio há sempre alguém para te apoiar. Aqui ninguém dorme na rua, nem ninguém passa fome. Podem existir dificuldades financeiras, mas ninguém passa fome”.

Muito ciente das suas opiniões e dos seus pontos de vista, Ermelindo Quaresma, rapper nos tempos livres, encontra uma excepção em toda a concepção geral da Cova, desde a cultura ao comércio: “Toda a parte cultural é muito forte. Os mais velhos por exemplo tocam instrumentos ou músicas que só se ouvem em Cabo Verde ou em São Tomé. As senhoras tocam batuque, há músicos que fazem kizombas, os jovens fazem rap, kuduro, etc. Depois há a comida tradicional africana, os cabeleireiros...há pessoas que vêm de outros bairros de propósito para virem cortar o cabelo aqui! Temos cerca de 50 e tal cabeleireiros aqui! Restaurantes devem ser para aí uns 20 ou 30!”. Sendo verdade o que o Ermelindo me conta e a Cova da Moura representa, assim, um dos pólos comerciais mais importantes no Concelho da Amadora e na zona da Buraca, gerando centenas e centenas de postos de trabalho, de oportunidades de vida. Não se compreende, então, a falta de aposta governamental nesta mesma zona.

No entanto, nem tudo serão rosas. O meu entrevistado compreende que “existem muitos problemas” e destaca, entre tantos, o abandono escolar: “os miúdos são na sua maioria de origem africana, a escola não está muito adaptada para os ensinar e eles já não querem ir trabalhar nas obras como os pais. São portugueses e querem ser vistos de outra forma, não como imigrantes, porque eles nem conhecem Cabo Verde. Querem o devido respeito e dignidade. Querem os mesmos direitos. Mas este abandono escolar também se deve à pouca atenção dos pais, que estão muito ocupados a trabalhar, de sol a sol”. A este factor associa ainda o racismo que, para ele, ainda está bem presente na nossa Sociedade, limitando assim as oportunidades de trabalho que um habitante da Cova da Moura poderia ter fora do seu bairro: “Um exemplo real? Um jovem da Cova foi à procura de trabalho e disse que era daqui. Resultado? Ninguém lhe deu trabalho”.

Consciente das dificuldades que ainda esperam a Cova da Moura, Ermelindo diz apenas que “daqui pode sair um pesadelo ou o futuro e isso depende muito das pessoas que estão cá, do governo local”. E antes de se levantar e abandonar o pequeno e agradável estúdio onde ele também já gravou, há alguns tempos, as suas próprias músicas, deixou, à semelhança de Celso, um apelo a todos os governantes portugueses: “Parem de roubar as pessoas, a ver se os pais conseguem manter os filhos na escola e terem mais tempo para estar com eles. É preciso dar mais atenção aos jovens, perceber o que querem, que pessoas eles querem ser no futuro, dar oportunidade aos jovens para praticarem desporto...uma zona que tenha muitos jovens, tem de ter mais equipamentos desportivos. As escolas estão fechadas, estão viradas de costas para a comunidade, temos aqui equipamento escolar e não o podemos utilizar. Não é preciso gastar muito dinheiro, é preciso é vontade política!”

Ermelindo levantou-se, agradeceu-me e, quase sem me dar oportunidade de recuperar o fôlego após uma discussão de ideias tão acesa e cheia de polémica, entra pelo estúdio de rompante, Teodoro Ribeiro. O meu último convidado vinha tão cansado, como cheio de vida. Com 56 anos e centenas de interessantes histórias por contar, poucas foram as que, infelizmente, tive o prazer de ouvir. Tirou o boné, sentou-se e rapidamente se mostrou interessado em compreender toda esta parafernália de ideias que lhe expunha, toda esta amálgama que viria a compilar numa reportagem, numa história, que poucos iriam ler. Teodoro não se importou. Queria falar, mas, acima de tudo, queria ser ouvido.

Cabo-verdiano de gema, Teodoro foi a única pessoa com quem falei que viu o bairro nascer ali, “bem no meio do nada”. Contou-me, sempre com ar nostálgico, que tinha abandonado a sua antiga terra a 6 de Agosto de 1975, após o 25 de Abril, para “ser português”: “Fi-lo e vim com os meus pais. Na altura nem pagámos nada, porque viemos com a Força Aérea, que tinha como dever aceder e ajudar aos pedidos que existissem para abandono do país”. Chegado a Portugal, foi mais um dos muitos imigrantes a arranjar trabalho na construção civil, sector que não atraía, mas que permitia continuar a pagar as contas: “Nem pensei em coisa melhor na altura [relativamente a emprego]. Uma pessoa vem para cá e o seu objectivo é trabalhar. Nada mais”. E a verdade é que a construção civil foi a única ocupação que as suas fortes mãos conheceram durante cerca de 30 anos. Hoje está reformado por invalidez, graças a uma lesão grave na coluna lombar. Se há conexão entre ambos os factores? Nem Teodoro saberá talvez dizer...

E como teria sido toda a sua adaptação à Cova? Lembrei-me de lhe perguntar, regozijando com a minha própria ignorância: “Quando conheci este sítio, não existiam mais do que umas 3 casas!”. Serviu para perceber que perante mim estava um dos homens que tinha feito tudo aquilo que eu agora parecia admirar, tijolo por tijolo, pedra por pedra, balde por balde. Dessa forma, continuou o seu discurso e explicou-me que fez parte integrante da Comissão de Moradores durante largos anos, tendo entrado quase na sua criação, isto em 1978. E é a partir dessa Comissão, desse discernimento colectivo, desse espírito de união, que a Cova vai, pé ante pé, desenrolando-se e crescendo ao longo de um qualquer monte lá para os lados da Buraca: “Tivemos muita, muita gente que lutou realmente por esta Cova da Moura (...) por isso é que eu digo que todos os habitantes de cá, mesmo sendo da Praia, ou de São Tome, ou da Guiné, ou de Angola, ou de Moçambique, ou de Timor, são para mim como uma família, no geral!”.

Esperançoso por ver avançar, finalmente, o projecto de requalificação urbana do bairro, Teodoro é dos primeiros a assumir que só quer ver a Cova bem e devidamente reconstruída, independentemente dos danos que isso lhe possa trazer: “Estando numa requalificação, se a minha casa tem que sair e não deve pertencer ao ‘novo bairro’, seja para fazer um espaço verde naquela zona, seja para outro qualquer propósito essencial, eu tenho que aceitar. Não resolvo nada não aceitando!”. Tem orgulho nas suas raízes e, para além de tudo, muito orgulho em ter visto este bairro nascer, crescer e “tornar-se grande”. O seu grande sonho é que tudo evolua da melhor forma para que os seus netos um dia “possam crescer aqui”. É isso que Teodoro quer e é isso que Teodoro deixa escapar, meio em tom de despedida, ainda antes de me deixar gravar algumas palavras, tal como fizeram Celso e Ermelindo, encabeçadas aos ouvidos dos nossos governantes nacionais: “Eu pediria que acelerassem a requalificação do bairro, porque só assim teremos um bairro pacífico. Um bairro requalificado é um bairro visível, amplo, com o comércio todo interligado. Não dá para continuar com esta Cova da Moura, totalmente difamada! Espero que os governantes tratem de fazer uma requalificação para breve, porque estamos ansiosos para que tal aconteça”.

Muito mais comedido nas palavras, o meu simpático contador de histórias volta a colocar o boné bem no topo da cabeça, levanta-se da cadeira, deseja-me “muita saúdinha” e, com a mesma conturbada e ágil calma com que entrou no estúdio, assim o abandona. Sai e deixa-me, por fim, a sós com os meus pensamentos.

Fora um dia preenchido, bem preenchido. Havia falado com 4 pessoas incrivelmente interessantes e com umas outras tantas que tiveram sempre um simpático sorriso para me dar. Para além disso, tinha também passado a conhecer e a compreender, em parte, uma realidade que, apesar de tudo, continuava a não ser a minha, a não me pertencer. No entanto, as coisas agora fluíam de maneira diferente. Sentia-me à vontade, sentia-me minimamente seguro ali...sentia-me bem.

Dizia-me o Ermelindo que a verdadeira mudança, essa, tinha que tomar lugar, antes de mais, nas nossas cabeças. Concordei, desde logo, com o que me disse, mas agora parecia realmente querer fazer sentido. Agora sim, fazia sentido que não continuasse a fazer sentido um bairro viver enclausurado na sua própria vivência e ambiente. Agora sim, fazia sentido que não continuasse a fazer sentido que quase 7000 habitantes vivessem, agora e sempre, em casas que, teoricamente, não são suas. Agora sim, fazia sentido que não continuasse a fazer sentido um bairro inteiro esperar por meia dúzia de papéis, recheadinhos de manhas e teias burocráticas, para que a reconstrução e a requalificação do seu património pudesse finalmente tomar lugar. Agora sim, fazia sentido que não continuasse a fazer sentido toda a discriminação ligada à Cova da Moura. Agora sim, eu percebia porque motivo era mais fácil esconder do nosso mundo, das nossas empresas e das nossas ruas estes cidadãos, estas pessoas: no final, eles, no meio de todas as suas limitações históricas e hereditárias, chamemos-lhes assim, têm um sentido de união, de pertença e de luta que nós, meros europeus, meros portugueses, meros ocidentais, talvez nunca venhamos a ter. Eles causam, sem sequer darem por isso, um sentimento de embaraço no “nosso povo” quando comparados os seus esforços com os nossos...eles ficam por cima, ficando, no entanto, sempre por baixo. Que a Comunicação Social vai dando uma ajuda, bem, isso talvez ninguém possa negar. Mas a verdade é que a Cova lá está, talvez mais saudável do que nunca e a caminho daquilo que nós, portugueses nascidos, crescidos e agarrados a Portugal, talvez nunca venhamos a conseguir: uma evolução no sentido do colectivo, no sentido do igual para igual. Uma evolução conjunta.

Saí e fiz-me novamente à estrada. Foi só mais uma história para contar, só mais um passeio que fiz, só mais um dia que vivi, só mais umas quantas vidas que conheci...e bem no meio do nada.


Texto: Tiago Martins
Fotografia: Ana Rita Bernardo

Agradecimentos Especiais:
- Ana Rita Bernardo
- Celso Ruivo
- Ermelindo Quaresma
- Nuno Antão
- Patrícia Horta
- Rita Martins
- Teodoro Ribeiro
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