28 de agosto de 2013

Já estivemos todos mais longe

Se alguma vez vos disserem – principalmente essa malta faladora que dá pelo nome de “jornalistas” – que ficar em casa é reservar lugar para ver a vida correr a sete pés e para bem longe, não acreditem. Se bem que às vezes temos razão. Mas isso são e serão sermões para outras paróquias que não esta que visitamos na presente data, tão crentes que somos nas experiências dos outros.
Eram umas seis da tarde quando me lembrei de pegar no telefone de casa – porque o telemóvel já se apegou a uns imutáveis 20 cêntimos – e ligar para o número de um suposto empregador que anunciava precisar de um jornalista com experiência comprovada, disponibilidade em deslocações dentro e fora de portas, fortes conhecimentos de inglês e uma ou outra premissa profissional e/ou pessoal da qual, ou das quais, já não me recordo...talvez por terem sido tantos os anúncios que li e as candidaturas que enviei na última semana.
Sisudo e prepotente, mas com um je ne sais quoi carismático impregnado na voz grave e apelativa, lá pigarreei enquanto marcava o número e nem dois segundos passaram quando uma voz (já) confusa me atendeu do outro lado:
- Estou sim? – perguntou.
- Olá, boa tarde. Como está? Olhe...
E o resto opto por nem sequer transcrever porque, sem razão aparente, perdi a sisudez, a prepotência e o sacana do je ne sais quoi mais rapidamente do que o Romário disse que «o Pelé calado é um poeta». E assim me senti também, por uns longos milissegundos.
Como um moribundo gramatical, levantei-me do tropeção e atropelo de palavras que tinha anteriormente conjugado e lá consegui explicar, num acesso de lucidez, que tinha encontrado um anúncio onde procuravam um jornalista. Expliquei também que estava disponível e interessado. A tal voz (já) confusa ficou ainda mais confusa e, sem saber bem o que dizer, meio à espera de uma iluminação ancestral qualquer, lá conseguiu esboçar um trejeito vocal de já reconhecido e esperado espanto:
- Espere lá que já percebi! Deixe-me desde já pedir-lhe desculpa. É que já perdi a conta ao número de pessoas que caíram no mesmo erro: na verdade eu sou jornalista e estou, isso sim, a oferecer-me para ser contratado por um empregador.
E pronto. Dois euros e tal derretidos no raio da chamada porque o site onde o anúncio estava alojado não sabia a diferença entre “oferta” e “procura”. Mas a parte bonita do dia – e da conversa, já agora – veio no seguimento de tudo isto, quando percebi que não era eu que ia pagar a conta do telefone no final do mês e que, por isso mesmo, podia ainda armar-me em “jornalista” e fazer uma pergunta:
- Já agora vai desculpar a intromissão, mas que idade tem o meu caro?
- Uns jovens 46 anos.

A partir daí a conversa estendeu-se àquele que é o tema desta crónica: o quão intemporalmente ridícula é a (falta de) contratação por parte dos Media. Ora, este homem tinha 46 anos e já tinha feito de tudo. Era tradicionalmente formado em Direito e tinha exercido durante algum tempo. Depois lá se virou para o jornalismo e, nesta nossa área, tinha-se tornado, ao longo de muitos, muitos anos – à volta de 15, talvez – num «tipo da escrita tradicional», como ele próprio se descreveu. E depois, ao relatar-me mais detalhadamente a sua experiência, esta sofrível revolta que vai vivendo dentro de mim voltou a crescer: já tinha uma boa idade e trabalhado como advogado quando o empregaram numa publicação. Esteve lá durante três anos. Três anos cheios de promessas de continuação, cheios de promessas de que passaria a efectivo. Mentira. Foram sim três anos a dar no duro, a fazer muita coisa que os outros não queriam e, claro, sempre a recibos verdes. Se recebia bem ou mal nem tempo tive de saber ou perguntar por entre o chorrilho de informações que me ia simpaticamente vomitando. Foi precário e de precário não passou. Demorou três anos a dar o murro na mesa, mas deu. Virou costas e foi à procura de melhor. Se encontrou ou não, não percebi. Nem quanto tempo demorou a encontrar. Mas passou depois dez anos numa empresa que precisava de alguém despachado e com experiência para tratar de relações públicas, comunicações, relatórios, etc. Enfim, tudo o que envolvesse a tal «escrita tradicional» que o nosso amigo já tão bem dominava. Surpresa das surpresas: há pouco tempo a empresa teve de cortar no pessoal e um dos desgraçados que lá trabalhava há mais tempo e que mais experiência tinha, foi para o olho da rua. Agora? Agora está há dois anos «à procura». Nada aparece. Nem ninguém parece querer saber. E ele próprio reconhece que não tem a minha «bagagem» e nem muito provavelmente o meu «à-vontade». Disse-me até que, com 22 anos, já ter estado num programa de televisão e ter uma licenciatura na mão é «muito, muito bom». Que estou «apenas a começar». Que tenho de acreditar que alguém na minha idade ainda tem um longo percurso pela frente e que não deixarão nunca de reparar em mim.
 
O que é que (me) falta então? Neste momento falta-me a felicidade e a esperança de que amanhã será melhor. Tudo porque o que na realidade falta são oportunidades e que ninguém tenha a lata de se levantar dum qualquer trono para nos dizer que não. Não a nós, jovens jornalistas com um curso na mão que investiram muito mais do que 3000€ em três anos para agora chegarem a uma rua sem saída. Que ninguém tenha a lata de dizer que a culpa é da economia. Ou que está tudo a fechar. Ou mesmo que esta porra de profissão não tem saída. Não, não. A culpa está naqueles que vingaram e que nunca viram a profissão como um dever institucional, social e, se quiserem, comunitário. A culpa está naqueles que já não se lembram do que “ralaram” – como diz a minha mãe – quando tinham a minha idade e quando sonhavam apenas em trabalhar numa redacção. A culpa passeia-se por essas mesmas redacções onde hoje o tal “nós” vai trabalhar durante três ou seis meses, sempre como estagiário, para «ganhar experiência» e encher os blank spaces das publicações cheias de fantásticos jornalistas que se acham demasiado importantes para fazer “breves” ou “curiosidades” ou “cronologias”. A merda da culpa vive neste estado que nos deixa ser explorados, que nos deixa ser escravos tecnocratas e que não se preocupa em lesar aqueles que assim se servem de nós, em constante ciclo vicioso, havendo sempre ali alguém que trabalha de borla e não dá prejuízo. A culpa vive também num sindicato que não procura culpabilizar criminalmente os órgãos de comunicação que insistem nestas práticas. E depois, como não poderia deixar de ser, a culpa vive em nós, jovens jornalistas, que não nos defendemos porque acreditamos realmente que é tão pouco o nosso valor, que merecemos realmente trabalhar sem receber um tusto.
O meu amigo desejou-me as «melhores felicidades» e desligou. Na cabeça ficou-me apenas uma pergunta que o mesmo me fez em tom de curiosidade:
- Então e sair do país?