3 de novembro de 2011

Função Pública sofre reajustes nos subsídios de Férias e Natal

«Cheguei ao ponto em que só não posso cortar na minha alimentação»

É uma das medidas do Orçamento de Estado com maior impacto sobre os funcionários e sobre a redução da despesa pública. São novas mudanças ao nível das remunerações na Função Pública que prometem trazer também uma nova conjuntura económica. Mas quem é que vai realmente pagar? Será a “despesa” demasiado elevada? Que efeitos práticos vão ter os cortes nos subsídios de férias e de Natal para aqueles que realmente precisam de uma ajuda extra?

Fotografia de Miguel Baltazar in Jornal de Negócios

Ana Maria Santos tem 60 anos e é Assistente Operacional no Centro de Saúde do Cacém-Olival. Assistiu à abertura deste «seu filho», há 11 anos atrás, e, desde então, nunca mais conheceu um outro posto de trabalho, uma outra realidade. É ela quem trata da esterilização dos materiais e equipamentos de saúde. É ela quem se arrasta escada acima, dia após dia, numa ânsia louca de tudo funcionar asseadamente e sem falhas. Não há espaço para erros quando se lida com a vida dos outros. Nem quando temos 60 anos, 37 de serviço, uma doença grave na perna direita e duas hérnias discais para completar o cardápio de maleitas.
«Já não vou para nova, ainda para mais depois da operação que fiz ao coração». Já lá vão cinco anos. «Agora custa mais». Mas a “Dona Ana”, como é habitualmente conhecida, é ainda “pau para toda a obra”. Trabalhou um ano e meio numa fábrica de soutiens, quando era jovem, e, desde então, não mais parou: «Já lá vai tanto tempo que nem me lembro do nome da empresa». Nas vésperas do 25 de Abril a fábrica fecha e a “Dona Ana” choca de frente com a possibilidade de se transferir para a Função Pública: «Uma amiga minha ficou doente e pediu-me que a substituísse. Mudei então de vida e passei a auxiliar de apoio e vigilância». Acabou a trabalhar na Amadora a contrato e depois passou a efectiva no Centro de Saúde do Coração de Jesus. O tempo voou, desde então, e aquele que parecia ser um caminho promissor, anos idos, revela-se agora cheio de buracos e obstáculos.
A Função Pública mudou. Tudo mudou. Hoje em dia, um faz o trabalho de muitos, e muitos fazem a sua vez na fila para o Centro de Emprego: «Faço tudo! Isto chegou ao ponto de me ver obrigada a limpar o vomitado das crianças na zona da vacinação. Há dias assim». Mas há também uma casa para manter e contas para pagar. Não se pode desistir. «Tem de se viver, filho! Eu contava com o subsídio de Natal para dar uma ou outra prenda. Usava-o também para ir ao talho comprar carne. Fazia-me falta, mas agora acabou». Melhores dias virão, mas talvez Ana Maria Santos já não os apanhe.
Com uma remuneração base de 748€, a sexagenária vai agora sofrer um corte de 68% em cada subsídio, o que, contas feitas por alto, resultará numa ninharia: «Os subsídios davam para pagar as poucas dívidas que tenho, mas já me deixei disso. Tenho de começar a pensar noutras possibilidades, mas não sei mais para onde me virar, muito sinceramente». Ainda que o panorama não seja brilhante, Ana Maria Santos não desiste de pôr um sorriso na cara. Ri-se, talvez, para não chorar: «Já não dá para comprar bolachas, já não posso ter o armário cheio delas! Era uma das minhas maiores gulodices. Cheguei ao ponto em que só não posso cortar na minha alimentação, mas vou ter de me deixar de despesas, sem dúvida».
Casada com Armando Nunes dos Santos, de 58 anos, e mãe de dois filhos «já adultos», Ana ainda hoje trabalha como sustento para todos os que ama: «O meu marido passa a vida desempregado. Ainda consegue arranjar uns biscates numa fábrica lá para Mem-Martins, mas tão depressa o contratam, como o despedem. Até já lá perdeu um dedo, num acidente de trabalho, mas ninguém se comoveu. Veio corrido com o seguro que reembolsava apenas metade dos 500€ que ele recebia. Já os meus filhos, uma com 33 e o outro com 28, continuam à procura de emprego, mas ninguém facilita. Ainda hoje lhes dou dinheiro, mas pergunto-me: “até quando?”».
Ainda com algumas dores na perna, depois de algum tempo sentada, Ana Maria Santos levantou-se e percorreu a sala: «Aos meus filhos não posso pedir ajuda, já me conformei. Se tiver mesmo de ser operada às hérnias, e se o meu marido nessa altura voltar ao desemprego, não sei como vou fazer».
É preciso aguentar. Mas até que ponto? O que é que está em causa? O que é que pode vir a acontecer a estas pessoas? Ana Avoila, a coordenadora da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública, defende que estes cortes não só são ilegais, mas também inconstitucionais. «Isto não é de agora. Está muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. Houve gente a perder perto de 800€ só com cortes e congelamento de salários nos últimos dois anos. Ainda querem privar essas pessoas dos seus subsídios?» Há uma preocupação constante com todos os funcionários, mas são aqueles que menos recebem que mais inquietam a sindicalista: «Os rendimentos mais baixos sofrendo estes cortes, e com tantas responsabilidades, são altamente prejudicados. É muito perigoso».
Para onde caminha então a Função Pública e seus respectivos trabalhadores? Onde estão os quadros, os efectivos, os cumprimentos de contrato, etc.? «Este Governo pretende entregar a Função Pública ao sector privado. Estamos no caminho para a extinção de uma grande parte dos trabalhadores do estado». São 500.000 postos de trabalho que podem então desaparecer, mas são, acima de tudo, 500.000 pessoas que perdem agora um «outrora grande poder de compra». O que é que se pode esperar do futuro? Só o tempo o dirá, realmente. Mas que Portugal nunca enfrentou tal tipo de sacrifícios desde o 25 de Abril, disso podemos ter a certeza. Até quando então?

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