23 de dezembro de 2011

Perder quatro feriados vem mesmo tirar descanso a Portugal


É preciso cortar. Mas é também preciso produzir. Propõe-se então agora, neste novo Orçamento de Estado, a redução do número de feriados nacionais. Mas quanto pode o país lucrar com esta medida? O suficiente para eliminar do calendário uma data histórica?

Fotografia de Álvaro Isidoro in Diário de Notícias

É uma das medidas que mais deu que falar nas últimas semanas. Os sindicatos não concordam, os especialistas mostram-se receosos e só o Ministro da Economia e do Emprego, Álvaro Santos Pereira, juntamente com o Governo, está realmente ciente daquilo que a redução dos feriados nacionais pode trazer economicamente ao país.
A proposta vem no seguimento da votação e discussão do Orçamento de Estado de 2012 – entretanto já aprovado – e está a gerar dúvidas no que toca à sua efectiva execução. Numa tentativa de simplificar a questão para os portugueses, Álvaro Santos Pereira convocou uma reunião com os parceiros sociais, no passado 28 de Novembro, na qual propôs a eliminação definitiva dos feriados do 15 de Agosto, do Dia de Corpo de Deus (feriado móvel), do 5 de Outubro e do 1 de Dezembro. Dessa forma, eliminar-se-iam dois feriados civis e dois religiosos, não se gerando assim atritos, por exemplo, com a Igreja. Acontece que a medida passou em votação na Assembleia da República – inserida no Orçamento de Estado -, mas continua ainda “entalada na garganta” de alguns, como sejam, por exemplo, os sindicatos, que não estão dispostos a tal sacrifício. Já a Igreja anuiu, mas a algum custo. No entanto, o que é que se consegue com a eliminação destes quatro feriados? É essa a questão.
Ricardo Barradas, jovem Economista de 25 anos, professor de Análise Económica na Escola Superior de Comunicação Social, é um dos cépticos. Interessado no assunto desde os seus tempos de licenciatura, aproveita agora para dizer que «não há mais valia, nesta altura, em cortar 4 feriados», defendendo que a medida não passa de uma «estratégia demagógica». O também Doutorando em Economia compreende que «existe actualmente um sufoco em Portugal que se prende com a necessidade de regularizarmos o défice», mas não acredita que a redução destes 4 feriados possa, por si só, resolver alguma coisa: «é importante termos em conta que estamos a falar de direitos que se perdem, não existindo para tal nenhuma justificação do ponto de vista das contas públicas». Mas e ao nível da competitividade? É importante para o Estado conseguir aumentar os níveis de produção, de forma a aumentar as possibilidades de negócio, de expansão e de vendas. Isso parece ser um dado adquirido. Ricardo concorda, mas atenta para o facto de a questão não passar apenas por aí: «não vejo como é que é possível tornar um país competitivo por trabalharmos todos mais 4 dias». Então é viável manter os feriados? «Os feriados geram receitas. O português vai às lojas e consome, vai ao cinema e dá dinheiro para ver um filme, vai a um restaurante e paga uma refeição. Pagando-a, paga também o chamado IVA, o que permite ao Estado receber sempre uma larga fatia». Chega-nos então uma nova perspectiva de análise para a qual ainda ninguém olhou: o consumo.
Segundo o Banco de Portugal, e fazendo contas arredondadas, por cada dia útil Portugal consegue, através do trabalho, produzir cerca de 650 milhões de euros. No entanto, não são esses 650 milhões que o Estado perde num dia de paragem total, como nos feriados. Diz o especial Luís Bento, de 60 anos, e Professor de Recursos Humanos da Universidade Autónoma de Lisboa, que Portugal perde sim, cerca de 37 milhões de euros. Porquê? Porque o consumo também interessa para o Produto Interno Bruto (PIB). E muito: «O Estado ganha bastante com os feriados, concedendo assim oportunidades de lazer às pessoas e adoptando uma posição de tolerância e de cumplicidade, o que também é importante». Portanto, não são só as questões económicas que interessam. Há mais para lá disso. E aqui Ricardo Barradas destaca os interesses sociais: «Isto só irá gerar mais descontentamento social. Mas não acaba aqui! Outro bom exemplo destas práticas prende-se com a ridícula questão de trabalharmos mais meia hora por dia, por exemplo». Luís Bento parece concordar: «Estamos a arranjar aqui uma maneira de não enfrentar os verdadeiros problemas económicos do país. Ou o Governo acredita que uma meia hora a mais não será uma meia hora no Facebook? Suprimir 4 feriados é um disparate e uma patetice».
Terá Álvaro Santos Pereira comprado – e usando a expressão do especialista em recursos humanos - «uma guerra desnecessária»? Numa altura em que todas as medidas de contenção parecem ser fundamentais, não faria mais sentido concentrar esforços na questão das “pontes”, por exemplo? Luís Bento crê que é por aí que temos de começar. «Uma “ponte” é mais danosa do que um feriado, porque é constantemente anunciada de véspera, acarretando incerteza, desconhecimento, falta de planificação e de flexibilidade. Dessa forma o custo de acesso ao bem que pretendíamos chega mesmo a triplicar». Portugal tem aqui espaço de manobra. Dessa forma, a possibilidade de não termos de eliminar datas com uma grande carga histórica e simbólica talvez fosse viável se a discussão tivesse sido levada de outra maneira. Mas até aqui, Luís Bento culpa o Governo: «São os modelos de organização de tempos de trabalho que estão ultrapassados e errados. É necessário distribuir de uma forma mais eficaz o calendário de trabalho e, aí, pergunto eu: porque é que o Estado não se senta à mesa com os seus parceiros sociais e tenta definir um número máximo de quatro pontes em Portugal, por exemplo, que teriam de ser anunciadas até dia 10 de Janeiro de cada ano? Acabava-se assim com as tolerâncias de ponto que tanto prejudicam a nossa economia e conseguíamos um calendário balanceado e previsível». São perguntas que ficam por responder. Por agora, sabemos apenas que o próximo ano não contará com quatro dos catorze feriados e que os portugueses vão perder tempo de descanso e de lazer. Os resultados económicos serão analisados no final do próximo ano, mas, até lá, fica a certeza de que, socialmente, acabar com um feriado traz mais do que 37 milhões de euros: traz uma guerra à qual o Governo já não pode virar as costas.

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O anterior artigo vem compilado numa secção de destaque que se dedica a explanar a fundo toda esta problemática da redução dos feriados nacionais. Essa mesma secção foi realizada no âmbito de uma cadeira de Jornalismo de Imprensa, tendo sido ainda necessário proceder à paginação da mesma. Deixo então, de seguida, a possibilidade de fazerem o download de todo este trabalho jornalístico.

Produção e Design: Tiago Martins e Sara Ribeiro da Silva

1 de dezembro de 2011

Entrevista ao Chef Ljubomir Stanisic

«Comendo, bebendo, sentido e cheirando é como descubro as coisas»

É a cozinha pela cozinha. Sem artifícios. Sem estratégias. É “100 Maneiras”. Ljubomir é “O Guerreiro” que já tanto perdeu, mas que luta agora por vencer e convencer. Já conheceu o sabor amargo de uma falência, mas hoje aventura-se por entre as apaladadas experiências da cozinha de luxo. Viveu no meio da guerra, durante a adolescência, mas a única batalha que trava agora é pela credibilidade da sua (ainda) pequena cadeia de restaurantes.


Ficou o encontro marcado para as 18h00 no “Bistro 100 Maneiras”, junto ao Largo da Trindade. Às 17h55, poucos minutos antes do combinado, o chef Jugoslavo já lá estava, dentro do seu restaurante, muito embrenhado num processo que, à vista desarmada, se designaria por “regateio comercial”. Discutia assim abertamente – e audivelmente – com um dos seus fornecedores.
Em tons de branco e preto se pintam as primeiras impressões, logo à entrada. A hospitalidade, essa, chegou na forma de um gin tonic. A receita é um original de Ljubomir que, apesar de viver para a cozinha, também arrisca a sua sorte no mundo dos cocktails. O copo chegou e vinha com o tamanho necessário para armazenar em si uns sete cubos de gelo, umas 10 folhas de hortelã e algo como meia garrafa de gin. Mas nem tudo o que parece é. E a rudeza do gin deixou-se suplantar por uma deliciosa combinação de morangos, folhas de rosa, rodelas de limão e raspas de gengibre.
À mesa sentou-se apressadamente Ljubomir Stanisic, de 33 anos e natural de Sarajevo. É pai de um garoto de cinco anos, mas também de uma cadeia de três restaurantes à qual resolveu dar o nome de “100 Maneiras”. Foi um dos três júris do programa culinário MasterChef, na RTP. É o autor do recentemente lançado livro “Papa Quilómetros”. É louco por vespas. Por All Stars. Por mulheres. Por Portugal.


Antes de mais, trato-o por "tu" ou por "você"?
Por tu. Caso contrário expulso-te já daqui. E vais cá ficar a jantar a seguir à entrevista. Não deixo que ninguém me pergunte o que quer que seja, sem provar a minha comida. Tens de me conhecer pela minha qualidade, não pela minha fama. Então vá, trata de ligar à namorada para vir já cá ter. Jantam juntos. Rápido, rapaz!

É? Dê-me um segundo, então! Vou mandar mensagem. Mas enquanto trato disto: Ljubomir, és ex-Jugolasvo ou Bósnio?
Não. Sou Jugoslavo! Não sou ex-Jugoslavo, nem "ex" nada. Sou Jugoslavo. Declaro-me como tal. Primeiro porque a minha família gostou - e gosta - muito de sexo, tal como eu, e misturaram-se todos: Muçulmanos, Croatas e Sérvios. É óbvio que tudo isso me influenciou. Tenho primos e tios croatas, sérvios e muçulmanos. Mas acabei por sair do país quando este se começou a partir.

Na altura da Guerra? Em 1992?
Mais cedo. Começou-se a partir em '89 graças àquele pequeno problema na Eslovénia. A partir daí, os focos de tensão abrangeram toda a Jugoslávia. A mim, afectou-me em 1991, em Sarajevo. No entanto a verdadeira separação dá-se em 1999, quando a Jugoslávia perde o nome e passa a ser "Sérvia". Mas eu saí em '97 como Jugoslavo e vou morrer como tal.

A guerra acabou na Bósnia em 1995. Consideras que as coisas por lá estão mais sossegadas? É esse o feedback que recebes dos familiares que lá vivem?
Sim, tenho lá família e vou lá todos os anos. Aliás, vou de dois em dois anos, praticamente. Não sou grande fã da ex-Jugoslávia. Desde a separação que não tenho grande carinho por aquilo.

O que é que falta agora?
Falta aquela união que existia. E, para além disso, saí de lá com 17 anos. Era um puto! Tenho agora 33, portanto - e como vês -, já criei o meu novo e próprio mundo em 16 anos. Quer isto dizer que já vivi muito mais fora dali do que por estas zonas.

Foram tempos difíceis até aos 17 anos?
Foram, foram! Então não?! Foram difíceis, mas foram muito bons! Muitas pessoas ficam com traumas de guerra, mas eu não. Eu fiquei guerreiro. Tão simples como isso. Já caí, já me fui abaixo, já fui à falência com um restaurante em Cascais, já perdi meio milhão de euros, mas a seguir levantei-me, construí coisas novas e trouxe-me de novo para a ribalta. Estou aqui! Sou e fui um guerreiro. Enquanto tu andavas de bicicleta eu desmontava AK-47s.

Porque é que vieste para Portugal?
Foi graças a uma viagem. Andei pela Europa com vários freaks, feito "calimero", com 200 marcos no bolso, e entretanto vim cá dar. Tinha uma irmã a viver em Portugal, a Natasha, e quando fiquei liso, instalei-me por cá. Foi quando comecei a gostar muito disto. Das pessoas, da natureza, da língua...só não gostava era do cheiro do bacalhau!

Portanto, certo dia acordaste, resolveste fazer uma viagem pela Europa e quando o dinheiro acabou, largaste aqui a trouxa...
Não foi bem quando acordei. Lembro-me que estava sentado numa esplanada com pessoal da minha turma, que eram todos uma cambada de mafiosos e malucos, e, do nada, apercebo-me de que eles eram todos muito burros. Não tinham objectivos na vida! Estavam para ali sentados, nos seus fatos de treino e com os seus ténis Nike ou Adidas, a terem uma conversa repleta de estupidez. Resolvi então levantar-me e dizer-lhes: «Estou farto de vocês e vou-me embora daqui! Estou farto desta merda, estou farto desta vida!». Dia seguinte: peguei na mala, comprei um bilhete e vim-me embora.

Fazias alguma coisa lá? Estudavas ou trabalhavas?
Estudava Engenharia Química e Alimentar e trabalhava à noite na padaria para sustentar a família. Tudo ao mesmo tempo.

Com que idade foi isso?
Comecei com 15 anos, nessa padaria.

Chegaste a Portugal mais ou menos em que altura?
Ainda me lembro. A 31 de Agosto de 1997.

Logo na altura do calor.
Sim, cheguei na altura do calor e numa boa altura. Ainda Lisboa não era como é. Mudou muito. E mudou para melhor.

Achas?
Sem dúvida. Lisboa é um sítio fenomenal. Isso é que ninguém me tira da cabeça. E não o digo por viver aqui. Já viajei pelo mundo todo, já vivi na Ásia, já vivi na África, já vivi em todo o lado. Já saí de Lisboa, quis desistir disto e não consegui!

Mas porquê?
Sei lá, pá! É magnética! Tem tudo a ver comigo, entendes?

E só sentes isso em Lisboa?
O único sítio onde me sinto realmente bem recebido é em Lisboa. Senti o mesmo em Londres, senti o mesmo em Barcelona, mas não tanto como aqui. E é esse o meu "problema": adoro-a. Adoro Lisboa. Sou mais português do que 90% das pessoas deste país.

Chegas a Portugal em '97 e qual é o primeiro contacto que tens com a cozinha portuguesa?
Vítor Sobral! Espera lá...não, não. O primeiro sítio onde trabalhei foi o "Janelas Verdes", um restaurante de picanha, onde espetei um garfo num cozinheiro brasileiro.

Era aí que eu queria chegar. Isso é mesmo verdade ou disseste isso na entrevista com o Fernando Alvim só pela piada da coisa?
Não! Foi mesmo verdade. Sei que o gajo me estava a dizer que não era assim que se cozinhava a carne. Sempre a embirrar comigo, arma-se em maestro, saca duma faca e começa num monólogo a dizer que os bifes tinham de estar virados para aqui e para ali. Peguei num garfo, virei-me para ele e disse-lhe: «Olha aqui a picanha...». Ele baixa-se, põe a mão na bancada e toma! Uma garfada na mão! Foi um acontecimento normal para uma pessoa com traumas de guerra, para um guerreiro, pá!

Mas não arranjas problemas assim, a reagires dessa forma?
Sim, arranjo. Outro dia parti a boca aqui a um dos sub-chefes da cozinha. Dei-lhe uma cabeçada. Mas sabes que mais? Ainda cá está a trabalhar. Voltou. Assumiu que estava errado. Tinha combinado comigo estar cá às nove da manhã. Chegou-me às onze, todo ressacado e saído de uma directa no "Europa", querias o quê?

Sentes que em Portugal as coisas não se resolvem tanto assim?
Mas eu não sou assim. Não resolvo as coisas assim. Sou um gajo muito porreiro. A sério. Tenho é uma atitude um pouco agressiva durante o trabalho e também dentro da minha cozinha. A cozinha é uma tropa, percebes? E eu estou no lugar do comando. Aqueles que não me ouvem é rua com eles! Estou aqui a lutar pela vida deles. Quem manda sou eu e o cliente tem de comer bem.

Voltando ao Vítor Sobral...
É o meu pai!

O teu pai português?
Exacto. Eu chamo-lhe pai, ele chama-me filho. Também já nos zangámos. Já o mandei para o caralho, já nos chateámos a sério, mas fazemos sempre as pazes. Foi o senhor que me recebeu na cozinha e que foi mais aberto comigo. Não me educou, mas a maneira de viver, de estar e de ser dele fez-me aprender muito. Ajudou-me bastante. Nessa altura eu atravessava a plena "fase de sucção": era um puto que sugava tudo e tinha a mania - e tenho - de querer ser o melhor em tudo aquilo que faço. E ter estado com ele durante todo aquele tempo foi fenomenal. E um dia eu disse-lhe: «Nós vamos separar-nos e eu vou ser melhor do que tu». E cá estamos hoje.

E quem é o melhor?
Ele é sempre o pai...

Então não há disputas com ele.
Não, mas dou-lhe baile na cozinha!

Dizes-me tu que tens de ser o melhor. E se não fores? É uma grande chatice?
Não, nem por isso. Continuo é a lutar! É a minha maneira de ser. E não quero ser o melhor, nem o número um: tenho é uma necessidade de auto-satisfação e de luta pelos meus objectivos. Viver sem objectivos torna-se estúpido. E eu vivo assim. E é também assim que surge o grupo "100 Maneiras". Somos 3 restaurantes, vamos abrir uma padaria e é desta forma que tenho tanta gente a vir atrás de mim. Acreditam nas minhas ideias e querem fazer este caminho comigo. Há crise? Vamos lutar contra a crise então! O Governo é uma merda? É, pois! O desemprego em Portugal está nos picos e vai aumentar. O IVA vai aumentar também. Então eu tenho de cortar em algum lado. Onde? Na mão-de-obra. Mas alguém neste país pára para pensar que a restauração em Portugal emprega cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas? Então porque não apostar nisto?!

Achas que, de certa forma, as tuas palavras e as tuas entrevistas também servem para acordar as pessoas lá fora?
Não servem para acordar ninguém. Servem para dizer a toda a gente que eu não desisto de lutar. Vivi a revolução contra Slobodan Milošević, em Belgrado. Participei em manifestações até mais não. Cheguei a passar uma semana a dormir ao relento porque tínhamos fechado a rua contra Milošević. E no final conseguimos! Por isso, há maneiras e maneiras. Como agora tenho direito a falar em público, coisa que na altura não existia em Sarajevo, pois teria sido automaticamente fuzilado, vou enfrentar as coisas! Tenho o direito à palavra. As pessoas dão-me espaço de antena e vou usá-lo.

O guerreiro vem agora lutar para Portugal?
Aquilo que teve real influência na minha vida foi o que passei na ex-Jugoslávia. Mas tirei partido de tudo, e ainda bem. Sou como sou, graças a isso. E tudo o que fiz até agora é muito melhor do que ficar em casa a bater com a cabeça na parede e a pensar: «Sou um coitadinho, estive na guerra e o meu primo foi abatido ao meu lado com um tiro na cabeça. Vi o cérebro dele a pulsar ao meu lado. Tinha apenas 12 anos. Fiquei traumatizado». Não, não fiquei traumatizado. Fiquei mais forte.

Tal como o "100 Maneiras" hoje em dia. Como surgiu esse projecto?
Estava na "Fortaleza do Guincho" como Chef Tournant. Já tinha passado por França, Espanha e também já tinha trabalhado em diversos hotéis portugueses. Quis sair da "Fortaleza do Guincho", isto por causa do racismo e do preconceito que o chef de então exercia - chamava-se Marc Le Ouedec. Certo dia ia-lhe partindo a boca, porque tratou muito mal um preto que lá trabalhava. Tive de sair do hotel.

Não houve garfos desta vez...
Não houve garfos, nem tem de haver sempre. Como te digo, sou um gajo muito porreiro. Não sou tão agressivo como tentam transmitir. Mas na "Fortaleza do Guincho" esteve lá um gajo a estagiar, o José Avillez - que hoje também está na ribalta. Conheci-o e resolvemos abrir um restaurante. Eu era o chef de cozinha e depois passei a sócio, sempre com aquela minha atitude de "bater na mesa": eu faço assim e isto funciona. Toda a gente chegou à conclusão de que eu era maluco e então deram-me sociedade. O projecto durou 8 meses, provavelmente porque não aguentámos com as nossas diferentes maneiras de ver as coisas, de trabalhar. Ele seguiu o seu caminho e eu cá fiquei com o meu "100 Maneiras".

Após algum tempo o "100 Maneiras" faliu.
Sim, após 5 anos.

Consideras que foi aí que falhaste realmente?
Não. Considero que foi aí que me aconteceu a segunda melhor coisa da minha vida.

Porquê?
Porque foi graças a essa falência que consegui construir o melhor negócio de restauração do mundo. Parei, pensei e fiz um restaurante que nunca vai à falência, que é o "100 Maneiras" do Bairro Alto: o restaurante de luxo mais lucrativo do país. Antes disso, estive dois meses fechado em casa, a bater com a cabeça na parede e a pensar que devia dinheiro a toda a gente. Nem casa tinha. E foi nessa altura que percebi que não tinha um único amigo, excepto uma pessoa que me convidou para ir viver lá em sua casa. Foi aí que percebi o que era ser realmente português: «É melhor a tua vaca morrer do que a minha nascer». Mas não bati em ninguém, não me chateei com ninguém e não espetei garfos em ninguém. Fechei-me em casa durante dois meses, cozinhei todos os dias e, finalmente, o Fausto Lopes, esse meu único amigo, meteu-me 10 mil euros na mão e disse-me: «Curte e diverte-te». Aí, em vez de ir sair e divertir-me acordava todos os dias às sete da manhã, fazia compras e cozinhava até não poder mais! Fazia 30 ou 50 pratos por dia e acabei por descobri que podia desenvolver um conceito formidável: o Menu Degustação, com preço único e mais barato. Virei-me para o Fausto, pedi-lhe mais 30 mil euros e ele deu-mos sem hesitar. Tornou-se no meu sócio, construímos o restaurante, pagámo-lo em três meses e num ano saldei as minhas dívidas todas.

Tens várias receitas no teu site do "100 Maneiras". Não tens problemas em expor os teus truques e os teus segredos assim para toda a gente?
Por acaso tenho-me apercebido muito de uma coisa: as pessoas em Portugal têm o hábito de copiar aquilo que as outras fazem. Tenho encontrado muitas coisas por aí, por exemplo, em alguns chefs do Porto, que se limitam quase a tirar uma fotocópia da minha receita e a usá-la por inteiro nos "seus" pratos. É que nem metem uma pitada de sal a mais! Mas muito sinceramente, isso não me incomoda nada. Falo com esses chefs sempre de igual forma. Porquê? Ora, porque um gajo é bom por alguma razão! Então que copiem! Assim não tenho a mínima dúvida de que capacidade criativa é coisa que não me falta.

E como é que crias os teus pratos?
Simples. Hoje em dia faço isso em pouco tempo. É só pensarmos um pouco: o que eu mais faço na vida e onde gasto mais dinheiro é a comer. E comendo, bebendo, sentido e cheirando é como descubro as coisas. Mas simplifiquemos: diz-me um ingrediente. Carne ou peixe.

Um ingrediente? Robalo.
Foste para o robalo. Vamos pensar: o Robalo sabe a mar. É um peixe branco. Tem níveis de albumina superiores a 40%, o que quer dizer que é um peixe gordo. É predador. Caça caranguejo, que é a principalmente alimentação dele. Não come algas. Perfeito. Com o que é que podemos ligar? Se ele vem do mar então correlacionamos com a terra! Para contrastar, usamos cogumelos. Molho? De caranguejo ou de camarão, daquilo que ele come. É assim que se criam receitas. É assim que eu as crio!
Penso num produto, no habitat desse produto, nas épocas de desova, por exemplo, e assim sigo. Neste caso, a desova do Robalo é em Fevereiro. Em Fevereiro há muita chuva. Óptimo! Viramo-nos para os cogumelos silvestres então. Tudo liga. Mas falta ferro. Vamos para os espinafres. Salteados, de preferência. É só isto. É assim que se faz "magia".

Há aí muito estudo da tua parte...
Mas é claro! Já li mais de oito mil livros sobre cozinha! Devo ter a maior biblioteca privada de gastronomia do Mundo! Agora até ando a ler as Enciclopédias da Alimentação Mundial. Por exemplo, sabes como é que a manga chegou ao Brasil?

Não faço a menor ideia...
Mas é que ninguém sabe! Chegou graças aos portugueses, através da Índia, e passando pela Madeira. Olha, e falando em Madeira: sabes como é que a cachaça chegou ao Brasil? Como é que se desenvolveu o conceito de caipirinha?

Sei que sabe bem, mas continuo a não fazer a mínima ideia...
Óptimo. Pensa: qual é a bebida tradicional da Madeira?

A Poncha.
Quais os primeiros descobridores a chegarem ao Brasil?

Os Portugueses!
E onde é que achas que eles pararam antes?! Pararam na Madeira, rapaz! E o que é que se bebia - e bebe - na Madeira? Poncha, pá! Então agora junta os pontos e percebes como é que os brasileiros inventaram a caipirinha. Fácil!

Mas quando cozinhas não te inspiras nos sabores da tua terra?
Inspiro-me em tudo, pode-se dizer. Obviamente que sou influenciado pela cozinha da minha mãe, por exemplo. Tenho pratos aqui dentro que são feitos por ela. Ainda hoje ela trabalha comigo! Tudo é uma inspiração, não só o que me lembro da minha terra. Até uma boa sessão de sexo com a minha mulher me serve para cozinhar algo de fantástico!

O que me leva a perguntar-te: sexo ou comida?
Os dois juntos! Não consigo desassociar uma coisa da outra, até porque as duas são vontades de comer.

Achas que se tocam, de alguma forma?
Sim. Tens sensações iguais com comida como na cama com a tua mulher, por exemplo. São iguais! Quando estás na cama, estás com vontade, estás ansioso. Quando tens fome, também. Quando cozinhas tens a necessidade de tocar em tudo, de sentir tudo. Na cama é a mesma coisa! Antes de penetrares a tua mulher tens de a conhecer, tens de a deixar excitada e preparada. Tens de a deixar feliz. Por isso é que eu digo que existe uma enorme semelhança entre o sexo e a comida e é para mim extremamente difícil diferenciar tais experiências. É uma ligação perfeita.

E o sexo é uma fonte de inspiração também?
Claro. É uma das melhores fontes de inspiração. Não tenhas dúvida nenhuma!

As mulheres portuguesas são mais belas do que na Jugoslávia?
A nível físico são completamente diferentes. As mulheres Jugoslavas são magras e altas. Aqui não. Existe de tudo um pouco! Mas posso dizer-te que foi uma das formas que usei para crescer. Foi dar tudo o que tinha a dar a estas mulheres. Foi dar-lhes paixão e amor. E foi assim que aprendi muito do que sei sobre este país. Foi assim que aprendi a ler e a escrever em português. Foi assim que aprendi a falar português. Foi através dessas mulheres que conheci a cultura deste país.

País esse que já é praticamente teu, “Lubjim”...é que ainda não acertei no teu nome! Não é nada fácil de pronunciar.
Sim, é verdade. É um nome difícil. Significa "paz e amor" e provém da Checoslováquia.

Já te valeu uma boa fornada de alcunhas, não?
Sim, várias. Os meus amigos chamam-me "Ljubo", por exemplo. Depois tenho um amigo que me chama "Tamborilovic", por causa do peixe. Um outro chama-me "Batata", porque sou maluco por batatas. Alcunhas são coisas que não me faltam.

Criatividade também não te falta, já vi. És tu que tratas da decoração dos teus restaurantes?
Sim, obviamente! Tratei de todos os restaurantes, inclusive este que é histórico e que remonta ao ano de 1854. E a verdade é que parti-o todo. Todo! Não ficou nada em pé e está dez vezes mais bonito. Tem agora mais a ver comigo. Tem de ter mamas de fora nos quadros, tem de ter estendais de roupa. Isso é Portugal! Olha para essa parede aí mesmo atrás de ti...

Conheço aquele stencil, por acaso.
Claro que conheces, mas não é só isso. São as cuecas penduradas também. É tudo isso e tudo isso é Lisboa. Por exemplo, tenho um prato, o "Estendal de Roupa", no restaurante do Bairro Alto, que surgiu da minha paixão pelo Pavilhão de Portugal, do Siza Vieira. Fiz uma pala, juntei-lhe molas, pequenos fios onde pendurar a "roupa" e, agora, o que lá penduro é bacalhau que tu podes tirar e comer. Tudo isto veio da inspiração que é para mim o Bairro Alto.


Gostas de todos os teus pratos da mesma maneira?
Gosto de todos eles, porque são feitos por mim, obviamente. Mas não gosto de todos da mesma maneira. Nem pensar. Cada um é uma experiência, uma viagem.

Algum que se destaque?
Não. Nem por isso. Cada um provoca em mim sensações diferentes. É impossível escolher!

Não há nenhum que “jogue” com as tuas emoções?
Sim, isso sim. Muito deles "brincam" com as minhas emoções. Todos eles me lembram algo - e já criei milhões de pratos - e despertam em mim uma reacção ou uma emoção assim para o diferente.

E como é que foi para ti a experiência do MasterChef?
Tinha a opinião de que não queria entrar na televisão, de que não queria todo esse mediatismo. Mas as pessoas mudam e eu não sou excepção. Então há um ano atrás pensei: «Quero fazer um programa de televisão!». Era uma outra altura da vida: ainda não tinha falido e estava completamente lançado. Lá apareceu o MasterChef e arranquei com o projecto. Foi uma experiência excelente.

Mas convidaram-te ou “fizeste-te de convidado”?
Eu já tinha escrito algumas coisas para a RTP1. Já lhes tinha enviado diversos formatos que um dia pensava vir a realizar. O livro "Papa Quilómetros" é um exemplo disso e, acredito, um dia destes há-de estar na televisão. Posso apenas dizer-te que foi uma oportunidade incrível. Ao nível da minha carreira, sentia que precisava de algo novo. Aquilo de que realmente gostei foi da oportunidade de descobrir como funcionam, por exemplo, as câmaras, como funcionam as pessoas e tudo o mais. Observar aquele realizador que parecia um chef na sua cozinha, a ordenar quais as câmaras que entravam...foi formidável. Para além disso sentia-me como peixe na água. Fiz tudo aquilo que gosto de fazer e não tive de mudar rigorosamente nada.

Acabaste por te dar bem com os concorrentes?
Sim, posso dizer que sim. Gostei muito do Viriato, por exemplo. Lembro-me que quando ele perdeu por causa daquela estupidez do gengibre, no final do programa, espetei-lhe um soco no peito e disse-lhe que no dia a seguir estaria à espera dele, às nove da manhã, no meu restaurante para o meter a trabalhar. Cheguei às 8h45 e o sacana já cá estava à porta.

Há muitos gritos na tua cozinha? És o Gordon Ramsay jugoslavo?
Não sou nenhum Gordon Ramsay. Sou o Ljubomir Stanisic e sou como sou.

Mas gritas tanto como ele?
Grito muito, sim. Não tenhas dúvida nenhuma. Chef que não grita na cozinha é um fraquinho.

A sério?...
Claro, pá! Então como é que é suposto eu meter ordem em mais de 20 pessoas?! Faço-o calado?

Claro que não, mas tens de admitir que faz impressão ver um homem a desatar aos berros quando gere um posto.
O Ramsay grita demais. Fá-lo porque está num programa. Na realidade as coisas são um bocado diferentes, mas não posso deixar de gritar na mesma! Então eu quero um risotto, peço-o a um dos meus chefs, ele não mo dá e eu vou lá fazer-lhe festinhas? Nada disso! Tenho de mostrar que o risotto é para ontem, Tiago! É assim.

Já tiveste queixas de clientes?
Sim, já as tive em todo o lado.

Lembraste de alguma em especial?
Sim, ficou-me uma na cabeça: tenho um amigo, um grande betinho, que tem uma agência de eventos que coordena coisas em todo o mundo. Certo dia veio cá e trouxe dois amigos de duas outras agências. Veio para cá convencido de que se ia armar em bom e em espertalhão, percebes? Então lá começou com os petiscos e toda a refeição dele foi à base disso. Não pediu mais nada. No final chama a empregada e, em frente aos tais dois amigos, diz-lhe: «Ouça, gostei muito de tudo, mas se calhar é melhor ir dizer ao chef que era pouca comida». Nesse dia tinha umas 60 pessoas a trabalharem na cozinha, tudo a rebentar pelas costuras e ainda tive de levar com aquela boquinha. Perguntei logo à rapariga quem é que lhe tinha dito aquilo. Qual não é o meu espanto quando ela aponta para esse meu amigo. Parei um segundo e resolvi lixar o gajo: fui ao armazém e descobri para lá uma cabeça de porco com 30 quilos. Peguei naquilo, meti-a no forno com a temperatura no máximo durante uma meia hora até ficar crocante. Tirei-a cá para fora, espetei com uma maçã na boca do porco, pus a cabeça num tabuleiro gigante de prata e pedi a um dos meus empregados para meter uma aparelhagem ao ombro e a tocar Emir Kusturica. Ele põe a música a tocar, eu abro a porta da cozinha, saio com uma cabeça de porco quase maior do que eu nos braços e atrás de mim vêm todos os meus empregados a dançar ao ritmo do Kusturica. Parámos a cozinha e entupimos o restaurante! Cheguei então à mesa, pedi para desligarem a música e perguntei bem alto: «Desculpem lá, mas foi nesta mesa que se queixaram de que a comida era pouca?». Ninguém teve tempo sequer para me responder porque agarrei logo na merda da cabeça e espetei com ela na mesa! Obviamente que as 100 pessoas que cá estavam se levantaram todas e começaram a bater palmas e a rir-se à desgarrada. Conclusão: o betinho ficou todo borrado e sem saber onde se enfiar. Mas até ele se divertiu e acabou por tirar umas fotos e meter no Facebook.

E já fizeste “amigos” entre a comida portuguesa também? Quais os teus pratos favoritos?
Adoro comida alentejana, por exemplo. Dou-te 10 pratos! Sopa de cação - não existe nenhuma igual no mundo. Migas - é um prato do caraças. Açordas - do melhor que há. Não me lembro de mais, portanto por agora largo o Alentejo: ameijôas à bulhão pato - o melhor prato de marisco do mundo. Cabidela de galinha - adoro pratos com sangue e a cabidela não é excepção.

Faltam cinco...
Gosto de Bolo de Caco, também. Adoro o peixe português e aí destaco o vosso atum - o melhor do mundo -, os salmonetes - pelos quais sou fanático - e as sardinhas - que são "o" prato. É difícil. Eu sou um fanático por comida, já comi tudo!

Porque é que voltaste a apostar em restaurantes depois da falência do em Cascais?
Porque não desisti de mim.

O que é que mudou do "100 Maneiras" de Cascais para estes três?
Mudei eu.

A comida continua igual?
Mudei eu, mudei eu. Só. Mais nada. A cozinha é minha. É diferente, mas tem alguma linha, tem alguma lógica. Quem comeu lá, quem come aqui, identifica sempre o Ljubomir. Agora, o que é que mudou? Mudei eu, pessoalmente. No meu antigo restaurante em Cascais tinhas, por exemplo, de ter o telemóvel desligado e de comer em silêncio. Ora, onde é que hoje em dia tal acontece?! Eu quero é restaurantes onde há barulho, onde as pessoas estão felizes, gritam, atiram talheres, há bom comer, bom ambiente e muito ritmo. Eu quero que os meus clientes se sintam bem na minha casa. Perguntas-me o que mudou? Digo-te que mudei eu, porque cresci.

E para o futuro? Já sabes se queres ficar em Portugal ou se gostavas de voltar à tua Terra Natal?
Voltar à Terra Natal só mesmo para ir lá buscar aquele queijo Kaimak e para fazer umas férias. Tirando isso, não volto a meter lá os pés. A ideia é ficar em Portugal até se fartarem de mim. Sem dúvida nenhuma. Por agora estou por aqui e só vou saindo quando surge a possibilidade de desenvolver novos projectos lá fora.

Que projectos são esses?
Calma. Vamos ver. Mas uma coisa te garanto: vão ser restaurantes. Os meus restaurantes.

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Fotografia: Constantino Leite

29 de novembro de 2011

Greve Geral

CGTP traz milhares de manifestantes para São Bento

Foi a primeira greve geral, desde o 25 de Abril, em que se viu uma manifestação a ser convocada para o mesmo dia em que o país pararia. O protesto foi agendado para a capital e concentrou-se em frente à Assembleia da República. Foram milhares os que aderiram. Foram também aos milhares, as críticas ao Governo. As duas centrais sindicais uniram-se, mais uma vez, mas foi a CGTP que encabeçou o protesto. 


«O ataque é brutal, a greve é geral!». Com palavras de ordem se cortou o trânsito. O silêncio. A dispersão. A calma. Os milhares de manifestantes haviam chegado. Traziam consigo faixas vermelhas, brancas e amarelas. Traziam também os punhos cerrados, abanando-os violentamente no ar. Os casacos abertos, tal não era o cansaço. Lá pelo meio, via-se até uma t-shirt estampada com a fotografia do lendário Ernesto “Che” Guevara, um dos símbolos da revolução cubana. Também a indumentária de Carvalho da Silva não passava despercebida, aquando da sua subida ao palanque, para o discurso que relembraria as – ainda não completas – 24 horas de Greve Geral. Com uma camisola vermelha, a lembrar os festejos do 25 de Abril, e um autocolante da Greve Geral ao peito, o líder da CGTP ajustou o microfone, encarou a multidão, pediu silêncio e começou a falar.
28 de Março de 1988. Temos de recuar mais de 23 anos para podermos falar sobre aquela que foi a primeira Greve Geral conjunta entre as duas centrais sindicais portuguesas. CGTP e UGT têm ideias diferentes, projectos distintos e os seus caminhos não se cruzam. Mas é já a terceira vez, desde o 25 de Abril de ’74, que abrem mão dessa convicção em prol dos direitos dos trabalhadores. Em prol do proletariado.
Esta é a sétima Greve Geral no nosso país desde a Revolução dos Cravos. Mas é também a segunda em apenas dois anos. A última foi no exacto mesmo dia, 24 de Novembro. A data parece ter ficado para recordar, mas nem tudo permaneceu igual desde então. O Governo mudou. Os problemas transfiguraram-se. A troika chegou e veio para ficar. A Europa afunda-se a olhos vistos. Para além de tudo isso, o ano não é o mesmo, o que significa novo Orçamento de Estado. Se na altura a CGTP anunciava a Greve Geral como «uma luta contra a resignação», resignação essa que advinha da aprovação do “Programa de Estabilidade e Crescimento III” (PEC), então hoje a central sindical adapta o seu discurso realçando que «esta é uma Greve Geral pela renegociação da dívida, contra o programa de agressão aos trabalhadores, ao povo e ao País».
Foi tudo isso que mudou. Mas há mais. Pela primeira vez, em quase 38 anos de Democracia governativa, Portugal conheceu uma Greve Geral em que os grevistas saíram à rua como mais uma forma de protesto organizado. Nunca tal iniciativa se tinha visto no nosso país. No entanto, e aqui separam-se as águas, a UGT não esteve presente e não elegeu nenhum representante para estar ao lado de Carvalho da Silva – pelo menos que se visse a olho nu.
O ponto de encontro da manifestação estabeleceu-se no Rossio, às 15h00, tendo como destino a Assembleia da República, mas tantos terão sido os esforços à volta da paralisação do país que a própria CGTP acabou por divulgar erradamente as horas e o local. Eram 15h10 e já os jornalistas esperavam os manifestantes em frente ao Palácio de São Bento. O que ninguém sabia era que a manifestação teria o seu início no Rossio às 15h00 e que desfilaria junto ao rio, até começar a subir, já no fim, pela Calçada da Estrela, em direcção à Assembleia. Não se falava em marchas até então. O corrupio de informações era audivelmente perceptível, mas a calma imperava e vinha sempre pautada pelos ritmos harmoniosos de Sérgio Godinho, o homem que se fazia agora ouvir através dos altifalantes previamente montados pela CGTP.
O movimento “Ocupar Lisboa” já lá estava e aproveitava o compasso de espera para distribuir alguns panfletos. Numa folha A5 branca, lia-se, em negro contraste: «Junta-te a nós e faz a tua voz ser ouvida». Foi exactamente isso que fizeram. Este e mais alguns movimentos de índole revolucionária, destacando-se aqui o nome dos “Indignados”, engrossaram assim as fileiras de uma manifestação de milhares, numa Lisboa de tão poucos. A greve deixou muitos em casa e trouxe o silêncio para as ruas. Pelo menos até às 16h00, hora de chegada dos manifestantes.
Meia hora depois, já se ouvia Carvalho da Silva. Com uma voz impetuosa, mas surpreendentemente tranquila e sem hesitações, começou por congratular os presentes: «A força do futuro está aqui e aqui se comprova». Voltavam assim as palavras de ordem e os aplausos. Mas com eles chegava também uma fortuita e pontual enxurrada de insultos, todos eles saídos das bocas e megafones dos trabalhadores portuários de Lisboa, e dirigidos a Passos Coelho. Contudo, o Secretário Geral da CGTP não baixou os braços e voltou a recuperar as atenções. Mostrou-se como o reflexo de todos aqueles incontáveis milhares de trabalhadores descontentes: desiludido, mas esperançoso. «Estamos conscientes de que temos de fazer sacrifícios, mas esses sacrifícios devem de ir ao encontro da recuperação da Democracia em Portugal», dizia exultante. «Que ninguém duvide que esta greve vai fazer diferença a muitos portugueses, mas nem por isso deixámos hoje de poder contar com mais de três milhões de trabalhadores». Estavam lançados os primeiros números e a garantia de que esta Greve Geral teria suplantado a do ano passado. Os piquetes haviam assim feito o seu trabalho, ainda que Carvalho da Silva não conseguisse esquecer as inúmeras rixas que se tinham dado com a polícia durante a madrugada, chegando mesmo a avisar as forças de segurança de que não teriam «legitimidade para obstruir tal tipo de intervenção». Mas os manifestantes voltaram a fazer-se ouvir quando este prometeu, já perto do final, mais luta, menos flexibilidade e um aumento da «resistência dos trabalhadores perante o patronato e contra um Orçamento de Estado que não promete nem investimento, nem desenvolvimento». Despedindo-se, fitou a multidão, pigarreou e deixou bem assente que «a juventude não será obrigada a abdicar de um futuro de felicidade». As primeiras notas da Internacional começaram a ecoar pelos altifalantes e aí Carvalho da Silva aproveitou para relembrar Portugal: «Viva o 25 de Abril!». Num clima de serenidade e companheirismo, a carrinha da CGTP fez-se à estrada. Meia hora mais tarde começariam os confrontos entre polícias e manifestantes que acabariam por marcar este 24 de Novembro. Já a CGTP e a maioria dos grevistas haviam subido a Rua de São Bento.

28 de novembro de 2011

Uma Manhã de Domingo

«Abro a porta do quarto e dou por um silêncio invulgar. São oito da manhã e os meus pais ainda dormem. Não é um dia como os outros. É um dia de greve. De Greve Geral.»


Esta semana Portugal voltou a abanar com uma nova Greve Geral. A segunda em apenas dois anos. A segunda com a organização directa e cooperante da CGTP e da UGT. Ainda que tenha havido uma manifestação, horas mais tarde - às 15h00, mais precisamente -, Portugal optou por ficar em casa numa quinta-feira soalheira, de pouco vento e que até convidava a sair de casa para o trabalho. Esta é a visão de um jovem estudante de 20 anos, que reside no Cacém, e que resolveu aproveitar a greve para fazer uma pequena corrida matinal.





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Texto, Sonoplastia e Produção: Tiago Martins

13 de novembro de 2011

A Restaurant Week Desembarcou em Cascais

«Hemingway. O antigo bar aterrou, há cerca de uma dezena de anos, na Marina de Cascais e por lá ficou. O primeiro proprietário fechou as portas após algum tempo e o espaço só voltou a ter clientes em 2002. Já o nome, esse ficou em honra do escritor e do mar que ali em frente repousa. Hoje as duas portas em vidro abrem-se para mostrar um restaurante inovador, mas de estilo antiquado. Hoje, Hemingway estaria orgulhoso por poder comer uma refeição quente neste que é um dos melhores restaurantes da linha»


Esta é a reportagem que fala sobre a iniciativa "Restaurant Week Cascais" e sobre a sua importância para a democratização no acesso do público aos estabelecimentos de fine dining, não esquecendo, para além disso, do contributo monetário para as causa sociais “Mulheres de Vermelho” e "CrescerSer".



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Texto e Sonoplastia: Tiago Martins
Produção: Pedro Sá

3 de novembro de 2011

Função Pública sofre reajustes nos subsídios de Férias e Natal

«Cheguei ao ponto em que só não posso cortar na minha alimentação»

É uma das medidas do Orçamento de Estado com maior impacto sobre os funcionários e sobre a redução da despesa pública. São novas mudanças ao nível das remunerações na Função Pública que prometem trazer também uma nova conjuntura económica. Mas quem é que vai realmente pagar? Será a “despesa” demasiado elevada? Que efeitos práticos vão ter os cortes nos subsídios de férias e de Natal para aqueles que realmente precisam de uma ajuda extra?

Fotografia de Miguel Baltazar in Jornal de Negócios

Ana Maria Santos tem 60 anos e é Assistente Operacional no Centro de Saúde do Cacém-Olival. Assistiu à abertura deste «seu filho», há 11 anos atrás, e, desde então, nunca mais conheceu um outro posto de trabalho, uma outra realidade. É ela quem trata da esterilização dos materiais e equipamentos de saúde. É ela quem se arrasta escada acima, dia após dia, numa ânsia louca de tudo funcionar asseadamente e sem falhas. Não há espaço para erros quando se lida com a vida dos outros. Nem quando temos 60 anos, 37 de serviço, uma doença grave na perna direita e duas hérnias discais para completar o cardápio de maleitas.
«Já não vou para nova, ainda para mais depois da operação que fiz ao coração». Já lá vão cinco anos. «Agora custa mais». Mas a “Dona Ana”, como é habitualmente conhecida, é ainda “pau para toda a obra”. Trabalhou um ano e meio numa fábrica de soutiens, quando era jovem, e, desde então, não mais parou: «Já lá vai tanto tempo que nem me lembro do nome da empresa». Nas vésperas do 25 de Abril a fábrica fecha e a “Dona Ana” choca de frente com a possibilidade de se transferir para a Função Pública: «Uma amiga minha ficou doente e pediu-me que a substituísse. Mudei então de vida e passei a auxiliar de apoio e vigilância». Acabou a trabalhar na Amadora a contrato e depois passou a efectiva no Centro de Saúde do Coração de Jesus. O tempo voou, desde então, e aquele que parecia ser um caminho promissor, anos idos, revela-se agora cheio de buracos e obstáculos.
A Função Pública mudou. Tudo mudou. Hoje em dia, um faz o trabalho de muitos, e muitos fazem a sua vez na fila para o Centro de Emprego: «Faço tudo! Isto chegou ao ponto de me ver obrigada a limpar o vomitado das crianças na zona da vacinação. Há dias assim». Mas há também uma casa para manter e contas para pagar. Não se pode desistir. «Tem de se viver, filho! Eu contava com o subsídio de Natal para dar uma ou outra prenda. Usava-o também para ir ao talho comprar carne. Fazia-me falta, mas agora acabou». Melhores dias virão, mas talvez Ana Maria Santos já não os apanhe.
Com uma remuneração base de 748€, a sexagenária vai agora sofrer um corte de 68% em cada subsídio, o que, contas feitas por alto, resultará numa ninharia: «Os subsídios davam para pagar as poucas dívidas que tenho, mas já me deixei disso. Tenho de começar a pensar noutras possibilidades, mas não sei mais para onde me virar, muito sinceramente». Ainda que o panorama não seja brilhante, Ana Maria Santos não desiste de pôr um sorriso na cara. Ri-se, talvez, para não chorar: «Já não dá para comprar bolachas, já não posso ter o armário cheio delas! Era uma das minhas maiores gulodices. Cheguei ao ponto em que só não posso cortar na minha alimentação, mas vou ter de me deixar de despesas, sem dúvida».
Casada com Armando Nunes dos Santos, de 58 anos, e mãe de dois filhos «já adultos», Ana ainda hoje trabalha como sustento para todos os que ama: «O meu marido passa a vida desempregado. Ainda consegue arranjar uns biscates numa fábrica lá para Mem-Martins, mas tão depressa o contratam, como o despedem. Até já lá perdeu um dedo, num acidente de trabalho, mas ninguém se comoveu. Veio corrido com o seguro que reembolsava apenas metade dos 500€ que ele recebia. Já os meus filhos, uma com 33 e o outro com 28, continuam à procura de emprego, mas ninguém facilita. Ainda hoje lhes dou dinheiro, mas pergunto-me: “até quando?”».
Ainda com algumas dores na perna, depois de algum tempo sentada, Ana Maria Santos levantou-se e percorreu a sala: «Aos meus filhos não posso pedir ajuda, já me conformei. Se tiver mesmo de ser operada às hérnias, e se o meu marido nessa altura voltar ao desemprego, não sei como vou fazer».
É preciso aguentar. Mas até que ponto? O que é que está em causa? O que é que pode vir a acontecer a estas pessoas? Ana Avoila, a coordenadora da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública, defende que estes cortes não só são ilegais, mas também inconstitucionais. «Isto não é de agora. Está muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. Houve gente a perder perto de 800€ só com cortes e congelamento de salários nos últimos dois anos. Ainda querem privar essas pessoas dos seus subsídios?» Há uma preocupação constante com todos os funcionários, mas são aqueles que menos recebem que mais inquietam a sindicalista: «Os rendimentos mais baixos sofrendo estes cortes, e com tantas responsabilidades, são altamente prejudicados. É muito perigoso».
Para onde caminha então a Função Pública e seus respectivos trabalhadores? Onde estão os quadros, os efectivos, os cumprimentos de contrato, etc.? «Este Governo pretende entregar a Função Pública ao sector privado. Estamos no caminho para a extinção de uma grande parte dos trabalhadores do estado». São 500.000 postos de trabalho que podem então desaparecer, mas são, acima de tudo, 500.000 pessoas que perdem agora um «outrora grande poder de compra». O que é que se pode esperar do futuro? Só o tempo o dirá, realmente. Mas que Portugal nunca enfrentou tal tipo de sacrifícios desde o 25 de Abril, disso podemos ter a certeza. Até quando então?

24 de outubro de 2011

A Rua É Nossa

«O FMI chegou a Portugal e trouxe consigo toda uma onda de contestação. Nas ruas de Lisboa desfilam agora os revoltosos. Os que não aceitam mais ser explorados e enganados. São velhos, são jovens. São estudantes, desempregados e precários. São pouco mais de 200 homens e mulheres que acreditam representar nas suas acções a larga maioria da população portuguesa.
Mas como é que chegaram até aqui?»

Esta é a reportagem que fala sobre o movimento "Democracia Verdadeira, JÁ" e sobre a sua acampada social e democrática do Rossio no passado mês de Junho.




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Texto, Sonoplastia e Produção: Tiago Martins

23 de outubro de 2011

O Fenómeno do Macartismo

Joseph Raymond McCarthy (1908-1957) foi um simbólico e para sempre recordado político americano...ainda que não pelas melhores razões. Eleito para o Senado pelo Partido Republicano em 1946, McCarthy escreveu, em sintonia com as conservadoras franjas da direita política, um dos períodos mais conturbados e anti-democráticos de toda a História Americana: o “Macartismo”.
Fundado em 1919, no seguimento das novas expressões socialistas e pró-comunistas oriundas da União Soviética, o Partido Comunista dos Estados Unidos da América (CPUSA) representou, entre as décadas de ’30 e ’40, um pólo de transformação e dinâmica social, cultural e política. Durante cerca de 20, 25 anos, o CPUSA desafiou o status quo americano e preparou aquelas que seriam as bases para uma visão crítica e socialista da sociedade nos EUA. Fortalecido pelos seus fiéis membros, ainda que em escassos números, o Partido Comunista revia-se e encontrava-se no seu verdadeiro movimento, na organização intra e extra-partidária. Focando a segunda aqui em causa, era através da dedicação e da constante interacção entre simpatizantes e militantes que o Partido vivia e conseguia assim fomentar a luta e o diálogo acerca de temáticas constantemente esquecidas, como «a igualdade racial, o anti-fascismo e o sindicalismo». O movimento comunista crescia, em grande parte, devido à perfeita inclusão conseguida entre CPUSA e centenas de grupos do mais variado panorama social, empresarial e institucional, podendo destacar-se aqui «empresas de advogados, sindicatos, campos de férias e até grupos de canto».
Mas, mais tarde ou mais cedo, previa-se um caótico fim para a causa comunista no panorama norte-americano. Tanto os EUA como a URSS acabavam de sair de uma II Guerra Mundial com os seus orgulhos feridos: os EUA porque tinham visto a União Soviética dar o “ponto final” às forças de Hitler, erguendo assim uma espécie de estatuto simbólico de heróis mundiais, aquando da chegada a Berlim (num episódio habitualmente apelidado de “Corrida para Berlim”). Já a URSS tinha outras razões para não tolerar sequer a presença dos Estados Unidos numa negociação pós-Guerra, visto que o número de baixas soviéticas ultrapassava o aglomerado de mortos em combate de todos os aliados juntos, não falando, para além disso, da clara hegemonia que os Americanos pareciam agora querer ostentar, apoiados numa nova política de expansão em constante contacto com o exterior. Tal período, ainda que não se supusesse, seria assinalado como um dos tempos mais negros e assustadores de toda a História Mundial: a Guerra Fria.
Pode-se dizer que o “ponto final” nas relações entre capitalistas e comunistas surge aquando da rejeição, pelo Kremlin, do Plano Marshall - principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial - tendo ainda sido imposto aos “satélites” russos que não dialogassem sequer com os EUA. «Os historiadores datam desse momento o fim definitivo das ilusões ocidentais em relação a Estaline».
A partir desta mesma conjuntura, e relembrando ainda, a 5 de Março de 1946, as palavras finais e determinantes de Churchill sobre a “cortina de ferro”, era já perceptível que se adivinhasse uma completa viragem nas “afinidades” entre Americanos e Soviéticos. Erguem-se dois muros: um de betão e que separa, literalmente, os dois mundos; e um outro, um muro definido e construído ao longo dos anos pelo ódio entre dois sistemas que não se aceitam e que lutam constantemente pela anulação um do outro. «Em 1947 é criada a CIA. Harry Truman acusa os soviéticos de estarem a violar o espírito de Ialta nas zonas sob controlo do Exército Vermelho. É a “doutrina Truman”, o início da política de containment (contenção). A desconfiança aumenta de ambos os lados».
Toda esta contextualização histórica não surge aqui, nesta pequena dissertação sobre um manifesto caso de manipulação, por simples inclusão e referência de dados e/ou de casos factuais. É necessário que se compreenda o que rodeia o fenómeno do Macartismo e o que lhe permitiu tal irrisória expansão, pois, caso contrário, os esforços de Joseph McCarthy serão unicamente vistos e revistos como simples acessos de loucura...e tal não é histórica ou politicamente verdade.
«Os soviéticos também satanizaram o inimigo, só que não tinham de se preocupar em ganhar votos dos congressistas ou eleições presidenciais e legislativas. Os EUA, sim, e para isso necessitavam do anticomunismo apocalíptico, mesmo para os políticos que não estavam nada convencidos da sua retórica, ou que (...) estavam suficientemente dementes para se suicidarem, porque viam russos da janela do hospital». Hobsbawm tocou exactamente na “ferida”. O Macartismo não foi, como tantos historiadores gostam de o assim apelidar, uma espécie de fenómeno isolado, individual e irracional. Não foi um descargo de consciência por parte de McCarthy que, em certa amanhã, lá resolveu levantar-se da cama e achar que os comunistas eram uma praga a eliminar e nada mais do que isso. Não. A caça às bruxas – outro possível nome para o caso do Macartismo – teve uma justificação, teve um prefácio e teve também um epílogo, ainda que este último ainda hoje se escreva por entre as mais diferentes franjas da sociedade americana.
No final dos anos 40 e inícios dos anos 50 o senador republicano Joseph McCarthy iniciou uma perseguição sem precedentes contra «todos os suspeitos de inclinações esquerdistas» aterrorizando e fomentando o medo, o ódio e a desconfiança no seio político e intelectual americano. Existiam, alegava o senador, «mais de 200 espiões comunistas» no Departamento do Estado e demais organismos governamentais de Washington. Tal situação, num país que vivia intensamente os primeiros anos da Guerra Fria e que mantinha a constante necessidade de se sobrepor e sobrevalorizar em relação às restantes nações e hegemonias mundiais, era catastrófica e servia unicamente para descredibilizar um Governo que tinha de ser forte em todas as alturas – pois do outro lado do mundo estaria à espreita um certo “bicho papão” sedento de poder e pronto para aproveitar qualquer deslize por parte dos EUA. No entanto, parecia que McCarthy havia descoberto um enorme pote de ouro no final do arco-íris: segundo afirmava, para além dos comunistas infiltrados no Governo, existiriam outros tantos milhares espalhados pelo Pentágono, pelas universidades, por Hollywood, pela Broadway e pelos variados canais de televisão pública. Ao que parecia, a praga seria mesmo verdadeira e assumia contornos preocupantes e colossais. Sempre carregado com enormes listas cheias de nomes de supostos “traidores da pátria”, o senador começava mesmo a criar um ímpeto de perseguição tal, que muitos comunistas – verdadeiros – optaram por abandonar o país ou por “desaparecer” durante algum tempo.
Surge então aqui uma justificável pergunta: se existiam de facto comunistas na América, facto provado nem que seja pela simples existência do CPUSA, então fará sentido falar num caso de presumível manipulação? Sim, faz sentido. Porquê? Ora, porque, e como a história vem mais tarde a contar, McCarthy ganhou uma importância tal junto do partido republicano e da opinião pública que ainda hoje é relembrado e falado quando ao de cima vêm tópicos de conversa como seja o fundamentalismo e o controlo da população árabe e muçulmana dentro dos EUA – tudo em prol da Segurança Nacional, como tão bem é sabido. Acontece que na altura McCarthy não levantou e deu vida ao espectro do comunismo por puro prazer ou, como alguns dizem, por loucura genuína. Foi planeado e, acima de tudo, necessário.
A América enfrentava uma verdadeira guerra do terror – considerando, ainda para mais, que é nesta altura que a própria URSS anuncia possuir, por fim, a bomba nuclear – e quem estava no poder eram os Democratas, pelas mãos de Harry S. Truman, partido que, no seu todo, observava a Guerra Fria de um ponto de vista mais comedido e refreado. Tal não agradava aos restantes congressistas de direita, todos eles republicanos, que, numa ânsia de provar o valor dos EUA perante o mundo, apoiavam o conflito directo e constante junto das frentes de ataque e de “reprodução” soviéticas. Tal posição foi clara no conflito entre Coreia do Sul e Coreia do Norte, no qual esta última, em 1950, invadiu a primeira. Os republicanos defendiam que era necessário recorrer a medidas extremas de ocupação militar na Coreia do Sul de forma a criar uma barreira à Coreia do Norte, no seu todo. Tal teve de ser aceite por Truman, de forma a satisfazer a opinião pública, mas a situação descambou quando os mesmos republicanos exigiram, através do general MacArthur, comandante dos exércitos na Coreia, «uma tentativa para estender os limites da guerra (...) até à China». Nesta altura surge o verdadeiro desentendimento entre Democratas e Republicanos, marcado pela própria demissão de MacArthur, a mando do Presidente dos EUA. Como sair então por cima nesta disputa interna? Nenhum dos lados pode incorrer na idiotice de “matar”, numa conjuntura mundial como esta, o seu próprio Governo, ainda que este possa estar a cargo da força política da oposição. É portanto necessário adoptar medidas inteligentes, racionais e, de certa forma, dissimuladas: o chamado inside job. E é aqui que entra o dito caso da manipulação.
Joseph McCarthy foi, durante cerca de 4, 5 anos, o grande peão, o grande batedor – utilizando uma expressão de índole militar – para o Partido Republicano. Afogados sempre nas suas mágoas e nos seus ódios de estimação, realçando-se aqui a discriminação comunista, os Republicanos precisavam urgentemente de alguém que fosse dispensável, mas suficientemente importante e dedicado ao Partido de forma a causar tumulto e controvérsia com um caso que mexesse com a opinião e pensamento de todos os Americanos. McCarthy acabou por preencher todos os requisitos e, para felicidade do seu Partido, montou o palco, arranjou as luzes, soltou os foguetes e apanhou as canas – como diz o povo. Ainda que tenha acusado centenas de constituintes do Governo de serem comunistas, nunca chegou sequer a conseguir provar uma acusação...nem uma (!). Mas o poder por trás de todo este esquema manipulativo era tão forte que, ainda assim, toda a sociedade americana compreendia McCarthy e, quem outrora nem sequer o conhecia, começava agora a apoiá-lo e a segui-lo de bem perto. O Macartismo não foi apenas um golpe de sorte ou um fruto do destino. McCarthy sabia ao que ia: «O Macartismo resultou na medida em que a Administração de Truman precisava do apoio da opinião pública para levar avante a política externa em vigor e resultou, também, porque o Partido Republicano vasculhava por um “podre” interno». Compreende-se então desta forma que, ainda que nada tenha sido provado por parte do senador, toda a América tenha eclodido numa caça às bruxas. A ideia era proteger a Nação. Os próprios conservadores – e até os Liberais - o diziam: “Os comunistas são o inimigo”...e o inimigo não é coisa de se ter por casa, ainda que a velha máxima defenda que um bom estratega “mantém os seus amigos por perto e os seus inimigos mais perto ainda”.
Começa então nesta altura o desrespeito pela escolha e liberdade democrática na América, suportada pela mensagem de um senador que, embebido e louco nas suas próprias palavras, acusava centenas e centenas de trabalhadores honestos e sérios de serem espiões a cargo da URSS...e quando a acusação não “colava” optava apenas pelo uso do termo commie (“comuna”) para descrever uma preferência ideológica – interessante observar como quase 70 anos depois o termo ainda subsiste. O país passa a apoiar McCarthy que, com o dom e uso da palavra, traz a público listas e listas todas elas cheias de nomes de supostos “traidores da pátria”. Os jornais enchem-se de escândalos, as televisões passam a cortar certos programas e até as próprias empresas de marketing – estas em início de vida – passam, ao lado do Governo, a imprimir milhões de mensagens contra o Comunismo e contra os seus apoiantes. Hollywood vê dezenas e dezenas dos seus aclamados artistas, produtores e argumentistas abandonarem os ecrãs e o país – o próprio Charlie Chaplin foi acusado de “actividades anti-americanas”, sendo julgado como um suposto comunista e vendo-se mesmo obrigado a abandonar os EUA, perto de 1952 –, é criada uma Lista Negra de Hollywood que continha nomes de todos os trabalhadores que pudessem, por algum motivo, ser comunistas e, este que era um meio de expressão livre e sonhador até ali, passa agora a produzir, literalmente, filmes de propaganda anti-comunista, pró-capitalista e pró-americana – destacando-se, neste caso, filmes como My Son John, I Married a Communist e Evil Epidermic. O próprio FBI começa agora a participar da perseguição aos comunistas por todo o país, colocando nas mais diversas organizações de esquerda – algumas conotadas a ideias socialistas, outras nem por isso – agentes infiltrados e escutas. Até o director do FBI, J. Edgar Hoover, via a extinção do movimento comunista como essencial à vida democrática e liberal dos EUA. A “segregação” alastra-se também às universidades e, a prova disso, surge numa das mais contestadas citações de Hoover: «Muitos professores são reeducadores (...) Servem apenas para deitar abaixo o respeito pelas agências governamentais e pelos costumes e valores morais americanos. Criam assim dúvidas e desacreditam a existência do Sonho Americano». Tal tipo de discurso, ainda para mais vindo de quem vem, cria na população americana mais incertezas e amarguras e a única maneira de as anular parece surgir unicamente no despedimento e afastamento de vários professores universitários, de vários mestres e doutores.
Os Estados Unidos da América começam a sufocar na sua própria especulação – qual crise financeira de 1929, mas agora de valores morais – e McCarthy passa até a ser, imagine-se, um problema para si mesmo. Ainda que conquiste junto da opinião pública milhões e milhões de fãs, que sempre soube manipular com o uso do espectro comunista, Truman começa a fartar-se das investidas do senador, um pouco em semelhança com o então Presidente do Partido Republicano, Dwight D. Eisenhower, que nunca soube lidar com a presença de Joseph McCarthy e de todas as suas infâmias no seio de um partido conservador que, apesar de gostar de agitar as águas, é ainda assim discreto, racional e exemplar – ou assim o tenta ser.
O começo do fim parecia estar perto para McCarthy, mas nem por isso a sua influência junto do povo americano, e seus receios, era menor. As denúncias de supostos comunistas multiplicavam-se a olhos vistos e aquilo que seria apenas uma medida de segurança – o registo no Governo de todos aqueles que tivessem ligações com o CPUSA – era agora uma forma privilegiada de acabar com a vida profissional, económica e social de pessoas que optavam apenas por acreditar noutro “sermão”, digamos assim. Acabou-se o sentido de democracia que os EUA tanto tentavam vender ao mundo. Atingiu-se o ridículo chegando mesmo a impor-se a censura artística – destaco ainda a «remoção oficial do livro Robin Hood das bibliotecas escolares no Indiana». E, por fim, Joseph Raymond McCarthy, senador do Wisconsin, acabou por dar o último passo em falso: numa audiência televisiva, transmitida em directo e em canal público, acusou o próprio exército americano de albergar entre as suas hostes “comunas” que nunca ninguém havia detectado. Visivelmente revoltado, o conselheiro do exército, Joseph N. Welch levantou-se do seu lugar e, quase que em jeito de conclusão, disse aquilo que até os próprios Republicanos tinham já vontade de dizer: «Senador...já fez aqui tudo o que tinha a fazer. Não tem dignidade, meu caro? Depois de tanta coisa, será que perdeu todo o sentido de decência?»
Talvez tenha mesmo perdido, mas não se perdeu sem ajuda...o problema é que ele foi o único a ajudar e, a ele, ninguém o ajudou. Em Dezembro de 1974, e depois de alguns tempos a enfrentar o fantasma da bebida na sua vida, McCarthy foi mesmo destituído do seu cargo e mais tarde censurado pelo Senado. A morte aproximava-se e o ex-senador conheceu-a a 2 de Maio de 1957, no Bethesda Naval Hospital, onde havia sido, dias antes, internado após uma grave crise hepática: o álcool pôs fim à sua atribulada vida e, com apenas 48 anos, McCarthy deixava a sua mulher, Jean e filha adoptiva, Tierney.
No entanto, não foi somente isso que o proclamado anti-comunista deixava para trás: para a História ficou também o seu argumento manipulativo de que a segurança e a protecção da Nação teriam de ser prioritárias e que, para isso, seria necessário combater, controlar e eliminar a expressão comunista nos Estados Unidos da América...mas o que ficou para contar foram histórias de repressão, de censura, de perseguição e de desrespeito pela liberdade. No final, a tão orquestrada manipulação serviu apenas, e como nos conta a História, para encerrar um capítulo e abrir um outro novo: «Como resultado do furor anticomunista, Truman não conseguiu preservar a aliança eleitoral democrática. A eleição presidencial de 1952 deu origem a oito anos de domínio republicano».
O peão de que os Republicanos tanto precisavam tinha, por fim, vindo, visto, vencido...e partido.