Foram tempos difíceis até aos 17 anos?
Foram,
foram! Então não?! Foram difíceis, mas foram muito bons! Muitas pessoas ficam
com traumas de guerra, mas eu não. Eu fiquei guerreiro. Tão simples como isso.
Já caí, já me fui abaixo, já fui à falência com um restaurante em Cascais, já
perdi meio milhão de euros, mas a seguir levantei-me, construí coisas novas e
trouxe-me de novo para a ribalta. Estou aqui! Sou e fui um guerreiro. Enquanto
tu andavas de bicicleta eu desmontava AK-47s.
Porque é que vieste para Portugal?
Foi graças
a uma viagem. Andei pela Europa com vários freaks, feito
"calimero", com 200 marcos no bolso, e entretanto vim cá dar. Tinha
uma irmã a viver em Portugal, a Natasha, e quando fiquei liso, instalei-me por
cá. Foi quando comecei a gostar muito disto. Das pessoas, da natureza, da
língua...só não gostava era do cheiro do bacalhau!
Portanto, certo dia acordaste, resolveste
fazer uma viagem pela Europa e quando o dinheiro acabou, largaste aqui a
trouxa...
Não foi bem
quando acordei. Lembro-me que estava sentado numa esplanada com pessoal da
minha turma, que eram todos uma cambada de mafiosos e malucos, e, do nada,
apercebo-me de que eles eram todos muito burros. Não tinham objectivos na vida!
Estavam para ali sentados, nos seus fatos de treino e com os seus ténis Nike
ou Adidas, a terem uma conversa repleta de estupidez. Resolvi então levantar-me
e dizer-lhes: «Estou farto de vocês e vou-me embora daqui! Estou farto desta
merda, estou farto desta vida!». Dia seguinte: peguei na mala, comprei um
bilhete e vim-me embora.
Fazias alguma coisa lá? Estudavas ou
trabalhavas?
Estudava
Engenharia Química e Alimentar e trabalhava à noite na padaria para sustentar a
família. Tudo ao mesmo tempo.
Com que idade foi isso?
Comecei com
15 anos, nessa padaria.
Chegaste a Portugal mais ou menos em que
altura?
Ainda me
lembro. A 31 de Agosto de 1997.
Logo na altura do calor.
Sim,
cheguei na altura do calor e numa boa altura. Ainda Lisboa não era como é.
Mudou muito. E mudou para melhor.
Achas?
Sem dúvida.
Lisboa é um sítio fenomenal. Isso é que ninguém me tira da cabeça. E não o digo
por viver aqui. Já viajei pelo mundo todo, já vivi na Ásia, já vivi na África,
já vivi em todo o lado. Já saí de Lisboa, quis desistir disto e não consegui!
Mas porquê?
Sei lá, pá!
É magnética! Tem tudo a ver comigo, entendes?
E só sentes isso em Lisboa?
O único
sítio onde me sinto realmente bem recebido é em Lisboa. Senti o mesmo em
Londres, senti o mesmo em Barcelona, mas não tanto como aqui. E é esse o meu
"problema": adoro-a. Adoro Lisboa. Sou mais português do que 90% das
pessoas deste país.
Chegas a Portugal em '97 e qual é o
primeiro contacto que tens com a cozinha portuguesa?
Vítor
Sobral! Espera lá...não, não. O primeiro sítio onde trabalhei foi o
"Janelas Verdes", um restaurante de picanha, onde espetei um garfo
num cozinheiro brasileiro.
Era aí que eu queria chegar. Isso é mesmo
verdade ou disseste isso na entrevista com o Fernando Alvim só pela piada da
coisa?
Não! Foi mesmo
verdade. Sei que o gajo me estava a dizer que não era assim que se cozinhava a
carne. Sempre a embirrar comigo, arma-se em maestro, saca duma faca e começa
num monólogo a dizer que os bifes tinham de estar virados para aqui e para ali.
Peguei num garfo, virei-me para ele e disse-lhe: «Olha aqui a picanha...». Ele
baixa-se, põe a mão na bancada e toma! Uma garfada na mão! Foi um acontecimento
normal para uma pessoa com traumas de guerra, para um guerreiro, pá!
Mas não arranjas problemas assim, a reagires
dessa forma?
Sim,
arranjo. Outro dia parti a boca aqui a um dos sub-chefes da cozinha. Dei-lhe
uma cabeçada. Mas sabes que mais? Ainda cá está a trabalhar. Voltou. Assumiu que
estava errado. Tinha combinado comigo estar cá às nove da manhã. Chegou-me às
onze, todo ressacado e saído de uma directa no "Europa", querias o
quê?
Sentes que em Portugal as coisas não se
resolvem tanto assim?
Mas eu não
sou assim. Não resolvo as coisas assim. Sou um gajo muito porreiro. A sério.
Tenho é uma atitude um pouco agressiva durante o trabalho e também dentro da
minha cozinha. A cozinha é uma tropa, percebes? E eu estou no lugar do comando.
Aqueles que não me ouvem é rua com eles! Estou aqui a lutar pela vida deles.
Quem manda sou eu e o cliente tem de comer bem.
Voltando ao Vítor Sobral...
É o meu pai!
O teu pai português?
Exacto. Eu chamo-lhe
pai, ele chama-me filho. Também já nos zangámos. Já o mandei para o caralho, já
nos chateámos a sério, mas fazemos sempre as pazes. Foi o senhor que me recebeu
na cozinha e que foi mais aberto comigo. Não me educou, mas a maneira de viver,
de estar e de ser dele fez-me aprender muito. Ajudou-me bastante. Nessa altura
eu atravessava a plena "fase de sucção": era um puto que sugava tudo
e tinha a mania - e tenho - de querer ser o melhor em tudo aquilo que faço. E
ter estado com ele durante todo aquele tempo foi fenomenal. E um dia eu
disse-lhe: «Nós vamos separar-nos e eu vou ser melhor do que tu». E cá estamos
hoje.
E quem é o melhor?
Ele é
sempre o pai...
Então não há disputas com ele.
Não, mas
dou-lhe baile na cozinha!
Dizes-me tu que tens de ser o melhor. E
se não fores? É uma grande chatice?
Não, nem
por isso. Continuo é a lutar! É a minha maneira de ser. E não quero ser o
melhor, nem o número um: tenho é uma necessidade de auto-satisfação e de luta
pelos meus objectivos. Viver sem objectivos torna-se estúpido. E eu vivo assim.
E é também assim que surge o grupo "100 Maneiras". Somos 3
restaurantes, vamos abrir uma padaria e é desta forma que tenho tanta gente a
vir atrás de mim. Acreditam nas minhas ideias e querem fazer este caminho
comigo. Há crise? Vamos lutar contra a crise então! O Governo é uma merda? É,
pois! O desemprego em Portugal está nos picos e vai aumentar. O IVA vai
aumentar também. Então eu tenho de cortar em algum lado. Onde? Na mão-de-obra.
Mas alguém neste país pára para pensar que a restauração em Portugal emprega
cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas? Então porque não apostar nisto?!
Achas que, de certa forma, as tuas
palavras e as tuas entrevistas também servem para acordar as pessoas lá fora?
Não servem
para acordar ninguém. Servem para dizer a toda a gente que eu não desisto de
lutar. Vivi a revolução contra Slobodan Milošević, em Belgrado. Participei em
manifestações até mais não. Cheguei a passar uma semana a dormir ao relento
porque tínhamos fechado a rua contra Milošević. E no final conseguimos! Por
isso, há maneiras e maneiras. Como agora tenho direito a falar em público,
coisa que na altura não existia em Sarajevo, pois teria sido automaticamente
fuzilado, vou enfrentar as coisas! Tenho o direito à palavra. As pessoas dão-me
espaço de antena e vou usá-lo.
O guerreiro vem agora lutar para
Portugal?
Aquilo que
teve real influência na minha vida foi o que passei na ex-Jugoslávia. Mas tirei
partido de tudo, e ainda bem. Sou como sou, graças a isso. E tudo o que fiz até
agora é muito melhor do que ficar em casa a bater com a cabeça na parede e a
pensar: «Sou um coitadinho, estive na guerra e o meu primo foi abatido ao meu
lado com um tiro na cabeça. Vi o cérebro dele a pulsar ao meu lado. Tinha
apenas 12 anos. Fiquei traumatizado». Não, não fiquei traumatizado. Fiquei mais
forte.
Tal como o "100 Maneiras" hoje
em dia. Como surgiu esse projecto?
Estava na
"Fortaleza do Guincho" como Chef
Tournant. Já tinha passado por França, Espanha e também já tinha trabalhado
em diversos hotéis portugueses. Quis sair da "Fortaleza do Guincho",
isto por causa do racismo e do preconceito que o chef de então exercia - chamava-se Marc Le Ouedec. Certo dia ia-lhe
partindo a boca, porque tratou muito mal um preto que lá trabalhava. Tive de
sair do hotel.
Não houve garfos desta vez...
Não houve
garfos, nem tem de haver sempre. Como te digo, sou um gajo muito porreiro. Não
sou tão agressivo como tentam transmitir. Mas na "Fortaleza do
Guincho" esteve lá um gajo a estagiar, o José Avillez - que hoje também
está na ribalta. Conheci-o e resolvemos abrir um restaurante. Eu era o chef de cozinha e depois passei a sócio,
sempre com aquela minha atitude de "bater na mesa": eu faço assim e
isto funciona. Toda a gente chegou à conclusão de que eu era maluco e então
deram-me sociedade. O projecto durou 8 meses, provavelmente porque não
aguentámos com as nossas diferentes maneiras de ver as coisas, de trabalhar.
Ele seguiu o seu caminho e eu cá fiquei com o meu "100 Maneiras".
Após algum tempo o "100
Maneiras" faliu.
Sim, após 5
anos.
Consideras que foi aí que falhaste
realmente?
Não.
Considero que foi aí que me aconteceu a segunda melhor coisa da minha vida.
Porquê?
Porque foi
graças a essa falência que consegui construir o melhor negócio de restauração
do mundo. Parei, pensei e fiz um restaurante que nunca vai à falência, que é o
"100 Maneiras" do Bairro Alto: o restaurante de luxo mais lucrativo
do país. Antes disso, estive dois meses fechado em casa, a bater com a cabeça
na parede e a pensar que devia dinheiro a toda a gente. Nem casa tinha. E foi
nessa altura que percebi que não tinha um único amigo, excepto uma pessoa que
me convidou para ir viver lá em sua casa. Foi aí que percebi o que era ser
realmente português: «É melhor a tua vaca morrer do que a minha nascer». Mas não
bati em ninguém, não me chateei com ninguém e não espetei garfos em ninguém.
Fechei-me em casa durante dois meses, cozinhei todos os dias e, finalmente, o
Fausto Lopes, esse meu único amigo, meteu-me 10 mil euros na mão e disse-me:
«Curte e diverte-te». Aí, em vez de ir sair e divertir-me acordava todos os
dias às sete da manhã, fazia compras e cozinhava até não poder mais! Fazia 30
ou 50 pratos por dia e acabei por descobri que podia desenvolver um conceito
formidável: o Menu Degustação, com preço único e mais barato. Virei-me para o
Fausto, pedi-lhe mais 30 mil euros e ele deu-mos sem hesitar. Tornou-se no meu
sócio, construímos o restaurante, pagámo-lo em três meses e num ano saldei as
minhas dívidas todas.
Tens várias receitas no teu site do
"100 Maneiras". Não tens problemas em expor os teus truques e os teus
segredos assim para toda a gente?
Por acaso tenho-me
apercebido muito de uma coisa: as pessoas em Portugal têm o hábito de copiar
aquilo que as outras fazem. Tenho encontrado muitas coisas por aí, por exemplo,
em alguns chefs do Porto, que se limitam
quase a tirar uma fotocópia da minha receita e a usá-la por inteiro nos
"seus" pratos. É que nem metem uma pitada de sal a mais! Mas muito
sinceramente, isso não me incomoda nada. Falo com esses chefs sempre de igual forma. Porquê? Ora, porque um gajo é bom por
alguma razão! Então que copiem! Assim não tenho a mínima dúvida de que
capacidade criativa é coisa que não me falta.
E como é que crias os teus pratos?
Simples.
Hoje em dia faço isso em pouco tempo. É só pensarmos um pouco: o que eu mais
faço na vida e onde gasto mais dinheiro é a comer. E comendo, bebendo, sentido
e cheirando é como descubro as coisas. Mas simplifiquemos: diz-me um
ingrediente. Carne ou peixe.
Um ingrediente? Robalo.
Foste para
o robalo. Vamos pensar: o Robalo sabe a mar. É um peixe branco. Tem níveis de
albumina superiores a 40%, o que quer dizer que é um peixe gordo. É predador.
Caça caranguejo, que é a principalmente alimentação dele. Não come algas.
Perfeito. Com o que é que podemos ligar? Se ele vem do mar então
correlacionamos com a terra! Para contrastar, usamos cogumelos. Molho? De
caranguejo ou de camarão, daquilo que ele come. É assim que se criam receitas.
É assim que eu as crio!
Penso num
produto, no habitat desse produto, nas épocas de desova, por exemplo, e assim
sigo. Neste caso, a desova do Robalo é em Fevereiro. Em Fevereiro há muita
chuva. Óptimo! Viramo-nos para os cogumelos silvestres então. Tudo liga. Mas
falta ferro. Vamos para os espinafres. Salteados, de preferência. É só isto. É
assim que se faz "magia".
Há aí muito estudo da tua parte...
Mas é
claro! Já li mais de oito mil livros sobre cozinha! Devo ter a maior biblioteca
privada de gastronomia do Mundo! Agora até ando a ler as Enciclopédias da
Alimentação Mundial. Por exemplo, sabes como é que a manga chegou ao Brasil?
Não faço a menor ideia...
Mas é que
ninguém sabe! Chegou graças aos portugueses, através da Índia, e passando pela
Madeira. Olha, e falando em Madeira: sabes como é que a cachaça chegou ao
Brasil? Como é que se desenvolveu o conceito de caipirinha?
Sei que sabe bem, mas continuo a não
fazer a mínima ideia...
Óptimo.
Pensa: qual é a bebida tradicional da Madeira?
A Poncha.
Quais os
primeiros descobridores a chegarem ao Brasil?
Os Portugueses!
E onde é
que achas que eles pararam antes?! Pararam na Madeira, rapaz! E o que é que se
bebia - e bebe - na Madeira? Poncha, pá! Então agora junta os pontos e percebes
como é que os brasileiros inventaram a caipirinha. Fácil!
Mas quando cozinhas não te inspiras nos
sabores da tua terra?
Inspiro-me
em tudo, pode-se dizer. Obviamente que sou influenciado pela cozinha da minha
mãe, por exemplo. Tenho pratos aqui dentro que são feitos por ela. Ainda hoje
ela trabalha comigo! Tudo é uma inspiração, não só o que me lembro da minha
terra. Até uma boa sessão de sexo com a minha mulher me serve para cozinhar
algo de fantástico!
O que me leva a perguntar-te: sexo ou
comida?
Os dois
juntos! Não consigo desassociar uma coisa da outra, até porque as duas são
vontades de comer.
Achas que se tocam, de alguma forma?
Sim. Tens
sensações iguais com comida como na cama com a tua mulher, por exemplo. São
iguais! Quando estás na cama, estás com vontade, estás ansioso. Quando tens
fome, também. Quando cozinhas tens a necessidade de tocar em tudo, de sentir
tudo. Na cama é a mesma coisa! Antes de penetrares a tua mulher tens de a
conhecer, tens de a deixar excitada e preparada. Tens de a deixar feliz. Por
isso é que eu digo que existe uma enorme semelhança entre o sexo e a comida e é
para mim extremamente difícil diferenciar tais experiências. É uma ligação
perfeita.
E o sexo é uma fonte de inspiração
também?
Claro. É
uma das melhores fontes de inspiração. Não tenhas dúvida nenhuma!
As mulheres portuguesas são mais belas do
que na Jugoslávia?
A nível físico
são completamente diferentes. As mulheres Jugoslavas são magras e altas. Aqui
não. Existe de tudo um pouco! Mas posso dizer-te que foi uma das formas que
usei para crescer. Foi dar tudo o que tinha a dar a estas mulheres. Foi
dar-lhes paixão e amor. E foi assim que aprendi muito do que sei sobre este
país. Foi assim que aprendi a ler e a escrever em português. Foi assim que
aprendi a falar português. Foi através dessas mulheres que conheci a cultura
deste país.
País esse que já é praticamente teu, “Lubjim”...é
que ainda não acertei no teu nome! Não é nada fácil de pronunciar.
Sim, é
verdade. É um nome difícil. Significa "paz e amor" e provém da
Checoslováquia.
Já te valeu uma boa fornada de alcunhas,
não?
Sim,
várias. Os meus amigos chamam-me "Ljubo", por exemplo. Depois tenho
um amigo que me chama "Tamborilovic", por causa do peixe. Um outro
chama-me "Batata", porque sou maluco por batatas. Alcunhas são coisas
que não me faltam.
Criatividade também não te falta, já vi.
És tu que tratas da decoração dos teus restaurantes?
Sim, obviamente! Tratei
de todos os restaurantes, inclusive este que é histórico e que remonta ao ano
de 1854. E a verdade é que parti-o todo. Todo! Não ficou nada em pé e está dez
vezes mais bonito. Tem agora mais a ver comigo. Tem de ter mamas de fora nos
quadros, tem de ter estendais de roupa. Isso é Portugal! Olha para essa parede
aí mesmo atrás de ti...
Conheço aquele stencil, por acaso.
Claro que
conheces, mas não é só isso. São as cuecas penduradas também. É tudo isso e
tudo isso é Lisboa. Por exemplo, tenho um prato, o "Estendal de
Roupa", no restaurante do Bairro Alto, que surgiu da minha paixão pelo Pavilhão
de Portugal, do Siza Vieira. Fiz uma pala, juntei-lhe molas, pequenos fios onde
pendurar a "roupa" e, agora, o que lá penduro é bacalhau que tu podes
tirar e comer. Tudo isto veio da inspiração que é para mim o Bairro Alto.
Gostas de todos os teus pratos da mesma
maneira?