1 de julho de 2013

As iminências da morte

Todos os dias morremos. Morremos mais um bocado. E um bocado de nós morre. Se formos jovens, para algo de novo nascer. Se formos velhos, para nunca mais lembrar. É assim a vida. É assim a morte. E é assim que vivemos para somente morrer. Cabe-nos saber retirar, extrapolar e expulsar da anterior frase, se possível ao pontapé e às cabeçadas, o advérbio que morbidamente a, e nos, assombra. Lutar para que existir não seja apenas um fenómeno da existência – humana, natural ou divina. Alcançar essa tal imortalidade que tanto nos preocupa, mas pelos motivos errados. Motivos esses que, ao longo de 21 séculos de humanidade, e outros demais lá para trás de Cristo, levaram à subjugação, tortura e morte de um mar de ser humanos bem maior do que aquele que Moisés abriu com uma seca pancada do seu cajado.
Todos os dias o imediatismo que nos afoga leva-nos de alguma forma a trepar à superfície para, imóveis, respirarmos um ar puro de letargia. Nunca a solidão e o isolamento nos fizeram tanta falta. Nunca fomos tão rápidos e tão apáticos. Nunca corremos tanto e de olhos fechados. Até ao dia em que esbarramos de frente contra a realidade. E ela nos atira com toda a sua nobre impiedade ao chão. Lá ficamos. Com um esgar de ingénuo cansaço deitamos a cabeça nas mãos e de olhos fechados acordamos. Percebemos que, ainda que novos, a vida não vai para nova. Que morremos. Que tudo morre. Que todos morrem. E nem aí acreditamos na morte. Porque o tal imediatismo que nos submerge faz-nos paradoxalmente acreditar, numa esperança meio pagã, que amanhã também é dia. E que o depois de amanhã dia será.
Hoje, há poucas horas atrás, tive de acreditar. Sentei-me ao lado dela. Encarei-a de lado – porque me faltaram as forças para ajeitar a cadeira e enfrentá-la de frente. Só não a olhei nos olhos porque os olhos já se tinham fechado, ao contrário da boca que semi-aberta permanecia. Imaginei por segundos que dali fosse sair mais alguma das suas eternas pérolas idiossincráticas cheias de uma ternurenta e tão própria má-língua. Quis que voltasse a refilar comigo por ter calças com buracos. Mas até a merda do calor me fez levar calções hoje. Então que dissesse que eram demasiado curtos. Ou demasiado longos. Ou que não tinha feito a barba. E que por isso estava mais parecido com o meu pai. Nunca fomos tão próximos quanto isso, mas já tenho saudades. E amanhã hei-de ter mais. E mais. E mais. Porque mesmo que me tenha sentado ao lado da morte hoje, sozinho, sou mais um que continua sem acreditar nela. Sempre focado que amanhã também é dia. Então amanhã a gente vê-se, avó. Que estejas onde sempre te quiseste. Nós queríamos-te cá. E cá te temos. E teremos.

Isaura Alves de Jesus
16/07/1920 - 01/07/2013

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