24 de outubro de 2011

A Rua É Nossa

«O FMI chegou a Portugal e trouxe consigo toda uma onda de contestação. Nas ruas de Lisboa desfilam agora os revoltosos. Os que não aceitam mais ser explorados e enganados. São velhos, são jovens. São estudantes, desempregados e precários. São pouco mais de 200 homens e mulheres que acreditam representar nas suas acções a larga maioria da população portuguesa.
Mas como é que chegaram até aqui?»

Esta é a reportagem que fala sobre o movimento "Democracia Verdadeira, JÁ" e sobre a sua acampada social e democrática do Rossio no passado mês de Junho.




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Texto, Sonoplastia e Produção: Tiago Martins

23 de outubro de 2011

O Fenómeno do Macartismo

Joseph Raymond McCarthy (1908-1957) foi um simbólico e para sempre recordado político americano...ainda que não pelas melhores razões. Eleito para o Senado pelo Partido Republicano em 1946, McCarthy escreveu, em sintonia com as conservadoras franjas da direita política, um dos períodos mais conturbados e anti-democráticos de toda a História Americana: o “Macartismo”.
Fundado em 1919, no seguimento das novas expressões socialistas e pró-comunistas oriundas da União Soviética, o Partido Comunista dos Estados Unidos da América (CPUSA) representou, entre as décadas de ’30 e ’40, um pólo de transformação e dinâmica social, cultural e política. Durante cerca de 20, 25 anos, o CPUSA desafiou o status quo americano e preparou aquelas que seriam as bases para uma visão crítica e socialista da sociedade nos EUA. Fortalecido pelos seus fiéis membros, ainda que em escassos números, o Partido Comunista revia-se e encontrava-se no seu verdadeiro movimento, na organização intra e extra-partidária. Focando a segunda aqui em causa, era através da dedicação e da constante interacção entre simpatizantes e militantes que o Partido vivia e conseguia assim fomentar a luta e o diálogo acerca de temáticas constantemente esquecidas, como «a igualdade racial, o anti-fascismo e o sindicalismo». O movimento comunista crescia, em grande parte, devido à perfeita inclusão conseguida entre CPUSA e centenas de grupos do mais variado panorama social, empresarial e institucional, podendo destacar-se aqui «empresas de advogados, sindicatos, campos de férias e até grupos de canto».
Mas, mais tarde ou mais cedo, previa-se um caótico fim para a causa comunista no panorama norte-americano. Tanto os EUA como a URSS acabavam de sair de uma II Guerra Mundial com os seus orgulhos feridos: os EUA porque tinham visto a União Soviética dar o “ponto final” às forças de Hitler, erguendo assim uma espécie de estatuto simbólico de heróis mundiais, aquando da chegada a Berlim (num episódio habitualmente apelidado de “Corrida para Berlim”). Já a URSS tinha outras razões para não tolerar sequer a presença dos Estados Unidos numa negociação pós-Guerra, visto que o número de baixas soviéticas ultrapassava o aglomerado de mortos em combate de todos os aliados juntos, não falando, para além disso, da clara hegemonia que os Americanos pareciam agora querer ostentar, apoiados numa nova política de expansão em constante contacto com o exterior. Tal período, ainda que não se supusesse, seria assinalado como um dos tempos mais negros e assustadores de toda a História Mundial: a Guerra Fria.
Pode-se dizer que o “ponto final” nas relações entre capitalistas e comunistas surge aquando da rejeição, pelo Kremlin, do Plano Marshall - principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial - tendo ainda sido imposto aos “satélites” russos que não dialogassem sequer com os EUA. «Os historiadores datam desse momento o fim definitivo das ilusões ocidentais em relação a Estaline».
A partir desta mesma conjuntura, e relembrando ainda, a 5 de Março de 1946, as palavras finais e determinantes de Churchill sobre a “cortina de ferro”, era já perceptível que se adivinhasse uma completa viragem nas “afinidades” entre Americanos e Soviéticos. Erguem-se dois muros: um de betão e que separa, literalmente, os dois mundos; e um outro, um muro definido e construído ao longo dos anos pelo ódio entre dois sistemas que não se aceitam e que lutam constantemente pela anulação um do outro. «Em 1947 é criada a CIA. Harry Truman acusa os soviéticos de estarem a violar o espírito de Ialta nas zonas sob controlo do Exército Vermelho. É a “doutrina Truman”, o início da política de containment (contenção). A desconfiança aumenta de ambos os lados».
Toda esta contextualização histórica não surge aqui, nesta pequena dissertação sobre um manifesto caso de manipulação, por simples inclusão e referência de dados e/ou de casos factuais. É necessário que se compreenda o que rodeia o fenómeno do Macartismo e o que lhe permitiu tal irrisória expansão, pois, caso contrário, os esforços de Joseph McCarthy serão unicamente vistos e revistos como simples acessos de loucura...e tal não é histórica ou politicamente verdade.
«Os soviéticos também satanizaram o inimigo, só que não tinham de se preocupar em ganhar votos dos congressistas ou eleições presidenciais e legislativas. Os EUA, sim, e para isso necessitavam do anticomunismo apocalíptico, mesmo para os políticos que não estavam nada convencidos da sua retórica, ou que (...) estavam suficientemente dementes para se suicidarem, porque viam russos da janela do hospital». Hobsbawm tocou exactamente na “ferida”. O Macartismo não foi, como tantos historiadores gostam de o assim apelidar, uma espécie de fenómeno isolado, individual e irracional. Não foi um descargo de consciência por parte de McCarthy que, em certa amanhã, lá resolveu levantar-se da cama e achar que os comunistas eram uma praga a eliminar e nada mais do que isso. Não. A caça às bruxas – outro possível nome para o caso do Macartismo – teve uma justificação, teve um prefácio e teve também um epílogo, ainda que este último ainda hoje se escreva por entre as mais diferentes franjas da sociedade americana.
No final dos anos 40 e inícios dos anos 50 o senador republicano Joseph McCarthy iniciou uma perseguição sem precedentes contra «todos os suspeitos de inclinações esquerdistas» aterrorizando e fomentando o medo, o ódio e a desconfiança no seio político e intelectual americano. Existiam, alegava o senador, «mais de 200 espiões comunistas» no Departamento do Estado e demais organismos governamentais de Washington. Tal situação, num país que vivia intensamente os primeiros anos da Guerra Fria e que mantinha a constante necessidade de se sobrepor e sobrevalorizar em relação às restantes nações e hegemonias mundiais, era catastrófica e servia unicamente para descredibilizar um Governo que tinha de ser forte em todas as alturas – pois do outro lado do mundo estaria à espreita um certo “bicho papão” sedento de poder e pronto para aproveitar qualquer deslize por parte dos EUA. No entanto, parecia que McCarthy havia descoberto um enorme pote de ouro no final do arco-íris: segundo afirmava, para além dos comunistas infiltrados no Governo, existiriam outros tantos milhares espalhados pelo Pentágono, pelas universidades, por Hollywood, pela Broadway e pelos variados canais de televisão pública. Ao que parecia, a praga seria mesmo verdadeira e assumia contornos preocupantes e colossais. Sempre carregado com enormes listas cheias de nomes de supostos “traidores da pátria”, o senador começava mesmo a criar um ímpeto de perseguição tal, que muitos comunistas – verdadeiros – optaram por abandonar o país ou por “desaparecer” durante algum tempo.
Surge então aqui uma justificável pergunta: se existiam de facto comunistas na América, facto provado nem que seja pela simples existência do CPUSA, então fará sentido falar num caso de presumível manipulação? Sim, faz sentido. Porquê? Ora, porque, e como a história vem mais tarde a contar, McCarthy ganhou uma importância tal junto do partido republicano e da opinião pública que ainda hoje é relembrado e falado quando ao de cima vêm tópicos de conversa como seja o fundamentalismo e o controlo da população árabe e muçulmana dentro dos EUA – tudo em prol da Segurança Nacional, como tão bem é sabido. Acontece que na altura McCarthy não levantou e deu vida ao espectro do comunismo por puro prazer ou, como alguns dizem, por loucura genuína. Foi planeado e, acima de tudo, necessário.
A América enfrentava uma verdadeira guerra do terror – considerando, ainda para mais, que é nesta altura que a própria URSS anuncia possuir, por fim, a bomba nuclear – e quem estava no poder eram os Democratas, pelas mãos de Harry S. Truman, partido que, no seu todo, observava a Guerra Fria de um ponto de vista mais comedido e refreado. Tal não agradava aos restantes congressistas de direita, todos eles republicanos, que, numa ânsia de provar o valor dos EUA perante o mundo, apoiavam o conflito directo e constante junto das frentes de ataque e de “reprodução” soviéticas. Tal posição foi clara no conflito entre Coreia do Sul e Coreia do Norte, no qual esta última, em 1950, invadiu a primeira. Os republicanos defendiam que era necessário recorrer a medidas extremas de ocupação militar na Coreia do Sul de forma a criar uma barreira à Coreia do Norte, no seu todo. Tal teve de ser aceite por Truman, de forma a satisfazer a opinião pública, mas a situação descambou quando os mesmos republicanos exigiram, através do general MacArthur, comandante dos exércitos na Coreia, «uma tentativa para estender os limites da guerra (...) até à China». Nesta altura surge o verdadeiro desentendimento entre Democratas e Republicanos, marcado pela própria demissão de MacArthur, a mando do Presidente dos EUA. Como sair então por cima nesta disputa interna? Nenhum dos lados pode incorrer na idiotice de “matar”, numa conjuntura mundial como esta, o seu próprio Governo, ainda que este possa estar a cargo da força política da oposição. É portanto necessário adoptar medidas inteligentes, racionais e, de certa forma, dissimuladas: o chamado inside job. E é aqui que entra o dito caso da manipulação.
Joseph McCarthy foi, durante cerca de 4, 5 anos, o grande peão, o grande batedor – utilizando uma expressão de índole militar – para o Partido Republicano. Afogados sempre nas suas mágoas e nos seus ódios de estimação, realçando-se aqui a discriminação comunista, os Republicanos precisavam urgentemente de alguém que fosse dispensável, mas suficientemente importante e dedicado ao Partido de forma a causar tumulto e controvérsia com um caso que mexesse com a opinião e pensamento de todos os Americanos. McCarthy acabou por preencher todos os requisitos e, para felicidade do seu Partido, montou o palco, arranjou as luzes, soltou os foguetes e apanhou as canas – como diz o povo. Ainda que tenha acusado centenas de constituintes do Governo de serem comunistas, nunca chegou sequer a conseguir provar uma acusação...nem uma (!). Mas o poder por trás de todo este esquema manipulativo era tão forte que, ainda assim, toda a sociedade americana compreendia McCarthy e, quem outrora nem sequer o conhecia, começava agora a apoiá-lo e a segui-lo de bem perto. O Macartismo não foi apenas um golpe de sorte ou um fruto do destino. McCarthy sabia ao que ia: «O Macartismo resultou na medida em que a Administração de Truman precisava do apoio da opinião pública para levar avante a política externa em vigor e resultou, também, porque o Partido Republicano vasculhava por um “podre” interno». Compreende-se então desta forma que, ainda que nada tenha sido provado por parte do senador, toda a América tenha eclodido numa caça às bruxas. A ideia era proteger a Nação. Os próprios conservadores – e até os Liberais - o diziam: “Os comunistas são o inimigo”...e o inimigo não é coisa de se ter por casa, ainda que a velha máxima defenda que um bom estratega “mantém os seus amigos por perto e os seus inimigos mais perto ainda”.
Começa então nesta altura o desrespeito pela escolha e liberdade democrática na América, suportada pela mensagem de um senador que, embebido e louco nas suas próprias palavras, acusava centenas e centenas de trabalhadores honestos e sérios de serem espiões a cargo da URSS...e quando a acusação não “colava” optava apenas pelo uso do termo commie (“comuna”) para descrever uma preferência ideológica – interessante observar como quase 70 anos depois o termo ainda subsiste. O país passa a apoiar McCarthy que, com o dom e uso da palavra, traz a público listas e listas todas elas cheias de nomes de supostos “traidores da pátria”. Os jornais enchem-se de escândalos, as televisões passam a cortar certos programas e até as próprias empresas de marketing – estas em início de vida – passam, ao lado do Governo, a imprimir milhões de mensagens contra o Comunismo e contra os seus apoiantes. Hollywood vê dezenas e dezenas dos seus aclamados artistas, produtores e argumentistas abandonarem os ecrãs e o país – o próprio Charlie Chaplin foi acusado de “actividades anti-americanas”, sendo julgado como um suposto comunista e vendo-se mesmo obrigado a abandonar os EUA, perto de 1952 –, é criada uma Lista Negra de Hollywood que continha nomes de todos os trabalhadores que pudessem, por algum motivo, ser comunistas e, este que era um meio de expressão livre e sonhador até ali, passa agora a produzir, literalmente, filmes de propaganda anti-comunista, pró-capitalista e pró-americana – destacando-se, neste caso, filmes como My Son John, I Married a Communist e Evil Epidermic. O próprio FBI começa agora a participar da perseguição aos comunistas por todo o país, colocando nas mais diversas organizações de esquerda – algumas conotadas a ideias socialistas, outras nem por isso – agentes infiltrados e escutas. Até o director do FBI, J. Edgar Hoover, via a extinção do movimento comunista como essencial à vida democrática e liberal dos EUA. A “segregação” alastra-se também às universidades e, a prova disso, surge numa das mais contestadas citações de Hoover: «Muitos professores são reeducadores (...) Servem apenas para deitar abaixo o respeito pelas agências governamentais e pelos costumes e valores morais americanos. Criam assim dúvidas e desacreditam a existência do Sonho Americano». Tal tipo de discurso, ainda para mais vindo de quem vem, cria na população americana mais incertezas e amarguras e a única maneira de as anular parece surgir unicamente no despedimento e afastamento de vários professores universitários, de vários mestres e doutores.
Os Estados Unidos da América começam a sufocar na sua própria especulação – qual crise financeira de 1929, mas agora de valores morais – e McCarthy passa até a ser, imagine-se, um problema para si mesmo. Ainda que conquiste junto da opinião pública milhões e milhões de fãs, que sempre soube manipular com o uso do espectro comunista, Truman começa a fartar-se das investidas do senador, um pouco em semelhança com o então Presidente do Partido Republicano, Dwight D. Eisenhower, que nunca soube lidar com a presença de Joseph McCarthy e de todas as suas infâmias no seio de um partido conservador que, apesar de gostar de agitar as águas, é ainda assim discreto, racional e exemplar – ou assim o tenta ser.
O começo do fim parecia estar perto para McCarthy, mas nem por isso a sua influência junto do povo americano, e seus receios, era menor. As denúncias de supostos comunistas multiplicavam-se a olhos vistos e aquilo que seria apenas uma medida de segurança – o registo no Governo de todos aqueles que tivessem ligações com o CPUSA – era agora uma forma privilegiada de acabar com a vida profissional, económica e social de pessoas que optavam apenas por acreditar noutro “sermão”, digamos assim. Acabou-se o sentido de democracia que os EUA tanto tentavam vender ao mundo. Atingiu-se o ridículo chegando mesmo a impor-se a censura artística – destaco ainda a «remoção oficial do livro Robin Hood das bibliotecas escolares no Indiana». E, por fim, Joseph Raymond McCarthy, senador do Wisconsin, acabou por dar o último passo em falso: numa audiência televisiva, transmitida em directo e em canal público, acusou o próprio exército americano de albergar entre as suas hostes “comunas” que nunca ninguém havia detectado. Visivelmente revoltado, o conselheiro do exército, Joseph N. Welch levantou-se do seu lugar e, quase que em jeito de conclusão, disse aquilo que até os próprios Republicanos tinham já vontade de dizer: «Senador...já fez aqui tudo o que tinha a fazer. Não tem dignidade, meu caro? Depois de tanta coisa, será que perdeu todo o sentido de decência?»
Talvez tenha mesmo perdido, mas não se perdeu sem ajuda...o problema é que ele foi o único a ajudar e, a ele, ninguém o ajudou. Em Dezembro de 1974, e depois de alguns tempos a enfrentar o fantasma da bebida na sua vida, McCarthy foi mesmo destituído do seu cargo e mais tarde censurado pelo Senado. A morte aproximava-se e o ex-senador conheceu-a a 2 de Maio de 1957, no Bethesda Naval Hospital, onde havia sido, dias antes, internado após uma grave crise hepática: o álcool pôs fim à sua atribulada vida e, com apenas 48 anos, McCarthy deixava a sua mulher, Jean e filha adoptiva, Tierney.
No entanto, não foi somente isso que o proclamado anti-comunista deixava para trás: para a História ficou também o seu argumento manipulativo de que a segurança e a protecção da Nação teriam de ser prioritárias e que, para isso, seria necessário combater, controlar e eliminar a expressão comunista nos Estados Unidos da América...mas o que ficou para contar foram histórias de repressão, de censura, de perseguição e de desrespeito pela liberdade. No final, a tão orquestrada manipulação serviu apenas, e como nos conta a História, para encerrar um capítulo e abrir um outro novo: «Como resultado do furor anticomunista, Truman não conseguiu preservar a aliança eleitoral democrática. A eleição presidencial de 1952 deu origem a oito anos de domínio republicano».
O peão de que os Republicanos tanto precisavam tinha, por fim, vindo, visto, vencido...e partido.

22 de outubro de 2011

Os Muros Também Falam

Em casa não se aprende nada. A vida é toda uma salganhada de experiências individuais e colectivas que, quando nos fechamos a sete chaves, tudo parece desaparecer. É ridículo. Incomodativo. E quem gosta de se ver sozinho? Como faz? Sobe o estore, destranca a pequena fechadura da janela e, com um click, vê o que o rodeia. Porque os olhos também vivem. E fazem viver.
Lá fora o mundo gira em torno de dúvidas, de crises existenciais, de insípidos valores, de esquecidos costumes e de pouco mais do que migalhas de pão que os pombos vão recolhendo e nunca partilhando entre si. São bichos execráveis, sujos e egoístas. E o que somos nós? Ninguém responde. Ninguém sabe. Da tua janela podes até ver muita coisa, mas através dela nunca conseguirás respostas. E em casa não se aprende nada.


Põe qualquer coisa pelos ombros e calça uns sapatos. Agasalha-te. Estás pronto? Então «sai de casa e vem comigo para rua». Alto e bom som, ouve-se, numa qualquer aparelhagem, que descansa num dos andares do bairro, o conjunto português que simboliza a actual jovem revolução portuguesa: os “Deolinda”. O som emana sabe-se lá de onde, mas jorra através dele um tal poder de inconformismo que parece que ouvimos daquela mesma varanda as últimas palavras de Martin Luther King, Jr. A música é outra, mas faz lembrar aquela que, por sua vez, também nos lembra do quão parvos somos. Nós, portugueses. Nós, Portugal. Faz-se silêncio. Tal como Luther King teve o seu (premeditado) fim, também a voz da revolução se cala. Serve para isso o pequeno e redondinho botão de play. O ambiente mudou. As nuvens ocuparam os céus. Ficou escuro. A voz da jovem revolução calou-se.
Nos jardins voam páginas de jornal. Há de tudo, para todos: de ontem, de anteontem e de hoje; cultura, desporto, política e economia; à Esquerda e à Direita; a cores e a preto-e-branco. Contam tanto, nunca tudo. Mas a memória fala mais alto e ao ver uma pequena notícia que dá destaque à detenção de três jovens que participavam numa assembleia popular promovida pelo movimento “Democracia Verdadeira, Já”, no Rossio, tudo veio ao de cima: palavras de ordem, manifestos escritos, gritos, risos, punhos no ar e esperanças mudas que ganharam naquele dia, na Avenida que nos desce pela Liberdade, um ânimo, um rejuvenescimento...uma força separatista, mas comum. Vem como o vento, de mansinho, mas sente-se. Vem segura, nas mãos, e apoiada, nos ombros, dos jovens deste país. Dos jovens deste mundo. No princípio de 2011, há já vários meses atrás, o sufocante regime de Hosni Mubarak caiu por terra e assim se começou a construir, passo por passo, um novo Egipto. Os jovens estiveram presentes. Semanas antes, o “suicídio quase-assistido” de um homem de 26 anos, despoletou manifestações armadas em massa por toda a Tunísia. O presidente da República, Zine el-Abidine Ben Ali, que ocupava o cargo desde 1987, vê-se obrigado a fugir para a Arábia Saudita. Os jovens estiveram presentes. Na Líbia, e já em Fevereiro, organizaram-se protestos através das mais variadas redes sociais contra as atrocidades do regime de Muammar Abu Minyar al-Gaddafi. O conflito dura até hoje, sem nada parecer ter mudado, mas tenta-se. Os jovens estiveram presentes. Tenta-se também no Iémen, país onde as mortes aumentam, dia após dia, depois do popular 27 de Janeiro ter posto na rua 16 mil iemenitas que exigiam a partida do Presidente Ali Abdullah Saleh, o homem que controla o país desde 1978. Os jovens estiveram presentes.
Os jovens estão presentes. E mudam actualmente um pré-conceito, ou, se preferível, um preconceito: o de que hoje em dia as massas mais jovens não têm o espírito combativo e revolucionário propício de outrora. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...é verdade que nem tudo fica, mas é também verdade que nem tudo parte.
Olhemos para o nosso país: o que restou de Abril? O que ficou de ’74 e de todas as suas cruzadas e demandas pelos avanços sociais, culturais e económicos? Muito. Muito ficou. Talvez já não seja esse o nosso Portugal, mas ainda o são partes dele. Partes que trazem saudades a muitos. Partes que fazem certas famílias ainda saírem à rua no vigésimo quinto dia do quarto mês do ano. Partes que fazem novas gerações, como a minha, sentirem orgulho naquilo que se conseguiu até agora construir. Partes que levam os que já não viram o 25 de Abril a acreditarem que este país também conheceu uma altura da sua vida na qual as pessoas se juntaram para sair à rua e, junto do Movimento das Forças Armadas, disseram que queriam «abrir caminho para uma sociedade socialista (...) tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno». Na Constituição da República Portuguesa, ficou. Nas mentes dos de então, ficou. Nas crenças dos de agora, continua. Os jovens portugueses estão acordados e querem mais. Viu-se no 12 de Março, vê-se nas acampadas do Rossio e subentende-se depois de tanta contestação perante a entrada do Fundo Monetário Internacional em Portugal.
Há toda uma onda de contestação a nível mundial, e Portugal aproveita a maré. É essa a verdade. Mas as coisas estão diferentes. Na altura da Revolução dos Cravos era o povo quem mais ordenava, tal como Zeca Afonso nos dizia e cantava. Os esforços eram conjuntos e em prol de uma sociedade sem heróis, sem figuras, ao contrário do que se via no anterior regime. O simbolismo dos personagens exemplares passava então a ser substituído pelos valores de Abril e pelas verdadeiras pessoas deste país: os pescadores, os agricultores, os tecelões, os pedreiros, os mineiros, os carpinteiros...em suma, os homens e mulheres que trabalhavam em Portugal e por Portugal. E há em Abril uma espécie de “simbólica condecoração” a essas mesmas pessoas, um reconhecimento pelas suas mágoas e lutas. Tal se comprova na expressão mais simples e natural, feita pelo povo português para o povo português: o mural político.
Já não o vemos em tão grande escala pelas nossas paredes, mas o mural político ainda existe. Sobreviveu. Faz despertar atenções e curiosidades entre os bairristas. Encontra-se por aqui e por aí. Está espalhado por Lisboa e por Portugal. Ainda resiste ao terror do tempo e às ameaças da propriedade privada e do pudor cívico. Há quem diga que está cá para ficar. Há quem diga que as tintas não duram para sempre. Mas o que está por trás de uma tão simples pintura de parede? Como pode a arte popular e urbana ter ajudado a construir em Portugal uma democracia?
Vladimiro Vale tem 37 anos e é funcionário político pelo PCP. É natural de Coimbra e conserva uma visão bem particular de Abril e daquilo que esses tempos representaram para Portugal: «Em ‘74 estávamos num período revolucionário a conquistar avanços nos direitos, nas liberdade e nas garantias. Hoje estamos num período de ataque a tudo o que foi conquistado. De certa forma atravessamos uma altura de ajuste de contas com os avanços que o capital teve que ceder perante a luta do povo e dos trabalhadores. Um desses direitos, que agora estão a atacar, é o direito à propaganda política e particularmente à pintura de murais». Sentou-se, pediu uma água e comentou comigo que era «um prazer» poder falar um pouco sobre a arte do mural político no nosso país. «Comecei desde cedo, ainda enquanto membro da JCP, com a pintura de murais da CDU com os característicos favos de mel e com a abelhinha». Afagando a barba, enquanto soltava uma pequena e controlada gargalhada, Vladimiro olhava agora para Lisboa e para as suas paredes, quase numa cómica tentativa de encontrar um qualquer registo escrito ou pintado por entre tantos prédios citadinos. «Faço parte do PCP desde 1996», disse-me. Sorriu também quando lhe perguntei quantos murais tinha feito até à presente data: «Não sei com precisão, mas mais de 20». No entanto, os sorrisos rapidamente foram trocados por sérios pesares aquando do porquê de ter entrado para o PCP. Vladimiro começou a sua vida política na Juventude Comunista Portuguesa (JCP) e fez apenas a transição para o Partido depois de um «longo período de dedicada militância». Defende o PCP com unhas e dentes, pois só lá encontra um ideal de luta «contra uma sociedade injusta» e as ideias necessárias para construir «um país livre da exploração do homem pelo homem». Mas de onde surge a paixão pelo mural dentro do PCP? «Paixão não é a melhor palavra para descrever a minha posição sobre a pintura mural. A pintura mural tem um carácter simbólico e é uma forma forte de afirmar as mensagens que queremos passar». O mural ainda hoje sobrevive, tal como Vladimiro afirma, porque há sempre uma mensagem a passar. No entanto a aceitação por parte do povo português não parece ser a mesma desde ’74. Vladimiro Vale defende que «a discriminação está mais relacionada com a tentativa de limitar o direito à propaganda em geral e não tanto à questão da pintura mural» e explica que exemplos não faltam. Ressalva, no entanto, um particularmente simbólico e no qual esteve presente: a pintura das Escadas Monumentais de Coimbra.
No passado dia 24 de Maio, a CDU concluiu um trabalho de grande envergadura que contou com o apoio de dezenas de militantes da JCP e do PCP: um mural que preencheu, com 5 curtas frases, todas as Escadas Monumentais de Coimbra. O caso caiu logo na imprensa e, num pequeno espaço de tempo, várias bocas logo gritaram ao vento que o que a CDU ali tinha feito era um crime contra o património nacional. Mais de uma centena de estudantes chegaram ainda a promover uma espécie de “contra-comício”, no exacto mesmo local, aquando da altura do comício coimbrense da CDU, em que o próprio Jerónimo de Sousa discursou. A coisa ficou em águas de bacalhau, mas a verdade é que as estrelas não brilharam numa noite em que Coimbra parece não ter gostado de receber as palavras do Partido Comunista e do Partido “Os Verdes”. Vladimiro não concorda: «Quem conhece Coimbra sabe que aquele local tem sido, desde os anos 60, utilizado por diversas forças políticas para a pintura de murais». Ao que parece, e segundo o comunista, «o empolamento dado a esta acção só pode ser lido como uma campanha que se destina a atingir a intervenção política da CDU e o que ela comporta de proposta alternativa ao rumo de desastre que está a ser imposto ao país».
Defende a CDU, e Vladimiro concorda, que o “contra-comício” realizado – e promovido através da rede social “Facebook” – foi apenas «uma acção ilegal de provocação orquestrada a uma acção de campanha eleitoral da CDU». Por fim, e como aluno de Coimbra que foi, Vladimiro quis apenas acrescentar, em consternado tom, que «existem mais de 20000 estudantes na cidade [Coimbra], portanto não é justa nem correcta a generalização de que a contestação foi feita pelos seus estudantes. Não confundimos a instrumentalização de alguns com o todo dos estudantes». Abordada e esclarecida a situação, Vladimiro bebeu um último gole da sua água, pousou a garrafa e, antes de se despedir, quis apenas deixar claro que, para ele e para o PCP, «enquanto houver paredes, haverá mural político». Simples.
São feitos para sonhar. Expõem a opinião de uma pessoa ou de um movimento, mas fazem-no sem pudores, primores ou grandes custos. São a mais modéstia palavra. São a voz muda da revolução que grita aos quatro cantos da cidade um tudo ou nada. São muros que, antes caiados de branco, agora contam uma história.
E de histórias vive a memória de Portugal. E quem melhor para nos fazer lembrar da altura em que o mural político mais marcava a actualidade? Só alguém que tenha vivido o PREC, o famoso e controverso Processo Revolucionário em Curso. Só alguém que tenha estado na linha da frente da “guerra” contra o Fascismo, da “guerra” contra Salazar. Só alguém que conheça o mural na sua mais simples expressão.
José Luís Seixas do Carmo, militante do PCTP/MRPP, conhece-o, e de bem perto. Aliás, o termo certo, e a utilizar, seria um “conhece-os”, já que foram tantos e tantos que chegou até a perder-lhes a conta. Com 67 anos e reformado, Seixas – nome pelo qual me pediu, desde logo, para o tratar – é uma espécie de nobre figura da chamada arte pública e urbana. E esse será mesmo a terminação mais acertada, visto que o que Seixas sempre fez quando tocou numa parede...foi arte. Sem esforços desmesurados, sem grandes dramas. Dedicação apenas. À causa, ao MRPP e ao futuro de Portugal.
Continua activo, continua a dar vida aos muros deste país e mostrou-mo na Avenida do Brasil, em frente à sede de candidatura do PCTP/MRPP. Lá, participou e fez parte do planeamento, há algumas semanas, de mais uma das grandes pinturas do Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses. A única coisa que mudou foi o tema. Agora fala-se do FMI...há uns anos falava-se da NATO, de uma outra crise económica e da Guerra Colonial. Os tempos mudam, mas Seixas adapta-se e os seus murais adaptam-se com ele, também. No Partido há mais de 37 anos, tendo-se ainda juntando antes do 25 de Abril, Seixas expressa nas suas palavras uma força de outros tempos, talvez. Saudosista – mas pouco – relembra os esforços infindáveis dos «camaradas Ribeiro dos Santos e Alexandrino de Sousa» mortos em dois desacatos com a PIDE e a UDP (União Democrática Popular). Foi - e é - um dos elementos mais estimados no seio do Partido. Teve a coragem de abrigar na sua casa «camaradas fugidos das polícias» durante vários meses e encontrou só e somente no MRPP uma verdadeira esquerda que «segue e defende os princípios marxistas-leninistas-maoístas contra todo o tipo de desvios». Tornou-se, assim, e ano após ano, num dos artistas mais considerados dentro do Partido e diz que apenas se dedicou à prática do mural, porque lá descobriu «um significado emancipador de luta e de esperança vitoriosa num futuro em que a arte revolucionária tem o seu papel de engrandecimento do espírito do Homem». Tal ideia transparece na observação do mais típico dos murais da esquerda portuguesa e, lá, facilmente identificamos imagens conotadas ao “Realismo Socialista”, estilo artístico da União Soviética entre as décadas de 1930 e 1960. Sendo o MRPP...até que faz algum sentido. Mas a que soube pintar um mural numa altura tão crítica como a do PREC? «Soube a entusiasmo, soube a trabalho útil para o futuro, futuro esse que, acredito, terá ainda continuação com muitos jovens que prosseguirão a arte muralista do nosso país».
Seixas é um vanguardista, mas nem se apercebe, tal não é a humildade e dedicação que tem pelo seu Partido. Enquanto deambula pelas suas histórias de um passado grande e memorável no MRPP, o verdadeiro artista português parece fugir para uma outra dimensão. Os seus olhos azuis dão azo a um qualquer oceano louco que tudo suga e leva consigo, concentração incluída. Mas, do nada, dá um salto na cadeira e, com um sorriso de esperança e saudade nos lábios, afirma categoricamente e sem margem para dúvidas: «O mural é um elemento libertador e representativo da democracia e da liberdade de expressão. É um dos meios fortes que exercem essa função, não só cá, como em todo o mundo». Contudo, Seixas vê para além do tradicional mural político. Apesar da idade compreende, talvez pela própria experiência, que os parâmetros expressivos e artísticos mudaram com os anos e que hoje os muros e paredes conhecem também, e cada vez mais, novas pinturas e estilos: «Há por aí belos murais que são uma nova forma de transmitir a mensagem: dão pelo nome de graffiti. Alguns mais artísticos do que políticos, mas têm, todos eles, ainda assim, o seu valor de embelezamento». Seixas mostra, desta forma, acreditar numa continuação, ainda que algo reformulada, do mural político português. Defende que o mesmo deve continuar a ser praticado com o devido respeito para com o património local e nacional, mas acredita que, se hoje em dia há uma discriminação para com as pessoas que praticam a arte muralista é porque é «o capitalismo que está no poder e como tal o mural político revolucionário assusta-o». Mas porquê? «Porque tal expressão contribui para pôr em causa o sistema vigente». A última pergunta surgiu, no meio de tantos pareceres, e o simpático e amigável militante do MRPP optou apenas por responder «Não há por onde complicar. Acredito, sem sombra para dúvidas, que o mural político irá sempre ser feito, enquanto possível, pelos de hoje e pelos jovens artistas do futuro».
José Luísa Seixas do Carmo já ia longe. Incrível é a capacidade como certas pessoas têm a força necessária para nos fazer sonhar ao longo de toda a sua vida. É ser-se artista. É ser-se muita coisa. É ser-se um nada de especial, um nada de forçado. Humildemente simples. Mirar agora, na Avenida do Brasil, o mais recente mural do MRPP e encontrar nele os traços de Seixas, depois de tantas e tantas outras pinturas, é sentir que esta expressão de arte pública urbana não cerrou funções no final do 25 de Abril de 1974. É ver que ainda há tanto por e para fazer, mas que, e acima de tudo, há ainda quem o queira fazer. É, como o próprio Seixas dizia, sentir entusiasmo...entusiasmo no futuro que, tão ironicamente, se apoia ainda hoje numa das mais nobres e distintivas expressões artísticas do passado.
E é este simpático e harmonioso conflito de tempos e gerações que nos salta aos olhos quando sobrevoamos, ainda que agarrados ao chão, as ruas da nossa cidade, as ruas da nossa capital. Afinal, Seixas tinha mesmo razão. O mural político há-de sempre existir, mas, por agora, reinventa-se. O graffiti faz assim parte de uma nova conjuntura, de novas expectativas e de uma nova parelha de jovens rebeldes e com um sentido muito próprio de justiça e avanço social. Permanecem no anonimato, como os de outrora, talvez porque as paredes falam por si só. Talvez porque continua a ser grave escrever e pintar uma parede. Talvez porque «grande parte daqueles que fazem graffiti não estão a fazer arte e, acima de tudo, não querem fazer arte».
Quem o diz é Ricardo Marnoto de Oliveira Campos, 39 anos, Sociólogo e Doutorado em Antropologia Visual. Uma espécie de caso singular no nosso país, Ricardo é actualmente um dos únicos académicos especializados na área das artes urbanas, tendo já realizado uma enorme e valiosíssima Tese de Doutoramento com o nome “Porque Pintamos a Cidade? – Uma Abordagem Etnográfica do Graffiti Urbano”, trabalho este que foi mais tarde adaptado em livro. A sua obra é, ao que parece, a mais rica, dentro do género, a circular pelo nosso país. Trata de fazer passar uma perspectiva mais intimista daquilo que são as novas expressões visuais urbanas e públicas, realizadas pelos “mais novos”. Ricardo não é um especialista no estudo do mural político, mas trata de perto com os motivos pelos quais a sociedade procura interagir através das suas paredes. «A meu ver, há interesse, desde logo, porque é um fenómeno que não está estudado ou que está pouco aprofundado. É uma forma de manifestação visual que parte dos jovens e que pretende, de alguma forma, uma ocupação do espaço urbano. Procura-se portanto a cidade e as suas paredes como forma de expressão». Mas de que forma se explica tal fenómeno? Dizia Seixas que os seus camaradas encontravam nas paredes, isto na altura do PREC, uma valiosa e rara forma de liberdade de expressão. Será ainda esse o caso? «A verdade é que a cidade é o derradeiro lugar democrático que permite a cada um usar o espaço público para comunicar da forma que entender...isto já para não mencionar o facto de que permite que grande parte das pessoas tenham acesso a produções visuais que não teriam de qualquer outra forma». É então legítimo, e por aqui se vê a intransigência no acesso à cultura no nosso país, afirmar que o mais comum dos cidadãos pratica ainda hoje o mural político, pois sabe que essa é a forma mais sincera e justa de contactar, lá está, com o mais comum dos cidadãos. Os pontos unem-se.
Ilustrador nos tempos livres, Ricardo confessa, enquanto me mostra os cantos e recantos da Universidade Aberta – instituição onde se formou na área da Antropologia Visual – que é dessa primeira paixão que «advém o interesse pelas expressões pictóricas». Ainda que se tenha especializado na área do graffiti, no seguimento das expressões mais juvenis – que tanto aprecia estudar - , Ricardo não esconde, ainda assim, aquela que poderá ser uma controversa opinião acerca do mural político no nosso país: «Os murais políticos do pós-25 de Abril, não foram considerados como uma forma de arte. Porque se o fossem não teriam sigo apagados até aos dias de hoje! Actualmente, e avaliando aquilo que se passou, fazia sentido terem-se preservado essas mesmas pinturas. Grande parte delas eram expressões estéticas que faziam sentido na cidade, tanto pelo seu valor estético, como histórico. Nunca houve uma política de preservação desses murais, daí que as instituições públicas e privadas nunca faziam nada para proteger os mesmos». Há portanto culpados no desaparecimento e na perda de importância do mural ao longo dos anos no nosso país, mas Ricardo opta por não “passar por aí”: «Eu não sou especialista nessa matéria, mas dá-me a ideia de que os murais políticos eram uma espécie de comunicação política que tinha muito peso na altura do PREC. Estava no fundo enraizada numa lógica de comunicação produzida pelo povo para o povo, com recursos relativamente baratos e que, de alguma forma, afrontava as normas existentes. Hoje em dia acho que tem muito pouco peso, porque é pouco eficaz. Não tem, nem de perto, a eficácia de um spot político na televisão ou o uso das redes sociais na Internet para comunicar em termos políticos. As pessoas habituaram-se a um outro tipo de publicitação e parece até que deixaram de estar familiarizadas com o mural político. Portanto é de alguma forma estranha a “ainda-existência” do mesmo...o que nos leva a pensar num outro tipo de questões».
Ricardo adiantou-se. Deixou “cair a toalha” - como normalmente dizem os grandes fãs do desporto rei - e sustentou assim a dúvida para com a actual função e importância da arte muralista na nossa sociedade, no nosso mundo. Parece que a força se perdeu. Parece que não faz mais sentido. Mas como se explica então que o próprio graffiti e suas associadas expressões (tag, reverse graffiti, stencil, etc.) estejam agora a encontrar no fundamento e na luta política um novo fôlego? A chamada arte pública urbana não tem fim anunciado? «Eu julgo que não, pois o mural está a ressurgir! A simbologia não se perdeu. Perdeu-se a eficácia. Hoje chega-se a muito mais gente através de outros modos. O muro não é o mais eficaz, mas é o mais simbolicamente poderoso. Porquê? Porque não é comum. E quanto menos comum, mais adeptos se ganham. Quem usa o mural, usa-o nesse sentido. É uma forma menos óbvia ou banal de comunicar e tem também a tal simbologia poderosa de estar no limite da transgressão, ou mesmo na ilegalidade. É liberdade!».
Então é isso. Olhamos, nos dias que correm, para uma transformação, um rejuvenescimento, uma reformulação daquilo que é a manifestação política nos muros e paredes deste país. Não por capricho. Talvez por necessidade. Porque são outros os artistas...e porque até a arte evolui – e ainda bem.
Ricardo acredita que o mural não irá morrer. Acredita sim, numa visão mais pragmática, como académico que é, dos próprios artistas perante a sua respectiva arte. É compreensível que quem percorra um caminho, goste de o fazer perspectivando um ideal de desenvolvimento e evolução...ainda que a tal se associe, por vezes, algum desconforto e sofrimento. Mas, e já o dizia Henry G. Wells, escritor inglês do séc. XIX, «O caminho com menos obstáculos é o caminho do perdedor».
A arte urbana segue e, de arrasto, segue também com ela o mural político dos nossos tempos. Está diferente. Mais ou menos bonito, mais ou menos profissional, mais ou menos rebelde, ele existe. É feito e é lido. Perpetra-se e perpetua-se. Desgarrou-se das críticas e seguiu o caminho que quis...o caminho que vai dar às esperanças não só dos partidos políticos, mas, e acima de tudo, dos indivíduos e dos seus sonhos. Essa é a grande diferença entre o antes e o agora. Entre o passado e o presente. Entre um tudo ou um nada.
Deu-se assim o salto até Xabregas. Lá repousa, numa aguerrida parede de fundo bordeaux o seguimento daquilo que foi o mural político no nosso país. Uma espécie de pièce de résistance. Um capítulo, não de conclusão, mas de seguimento: um mural, feito há poucos meses, de seis metros de comprimento da autoria do movimento dos “Precários Inflexíveis” (PI). Os conhecidos “Precários” nascem no MayDay de 2006, em Milão, mas só ganham real expressão em Portugal já em 2007, no dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador. Deste movimento fazem parte trabalhadores precários, todos eles envolvidos em várias frentes que combatem a precariedade laboral e a insegurança no trabalho. Renato Gonçalves é um deles.
Renato tem 28 tenros anos e está em processo de transição contratual, depois de sair da REN, para a empresa BOSCH, como administrador de Sistemas de Telecomunicação. É também estudante de Engenharia, em regime pós-laboral, no curso de Telecomunicações do ISEL. Faz parte dos PI há mais de seis meses e foi, durante três anos, um falso trabalhador independente, a recibos verdes. Acostumado à luta laboral e ao sindicalismo, tudo graças a uma «herança de família», Renato mostrou-se, desde logo, desperto para a realidade muralista do nosso país: «A seguir ao 25 de Abril houve um boom dos murais políticos no nosso país. A repressão deixou de existir e a polícia política havia desaparecido». Renato Gonçalves ressalva que a Revolução dos Cravos trouxe a Portugal uma outra direcção, um outro sentido ao caso da arte pública e urbana. No entanto, se inimigos existiam antigamente, hoje não deixa também de ser esse o caso: «Existiram alguns políticos que tentaram proibir esse tipo de manifestação [o mural], mas felizmente nunca o conseguiram».
Os PI recorrem à expressão muralista há já algum tempo porque toda ela «tem uma visibilidade acrescida». A ideia-base consiste na divulgação das estratégias dos trabalhadores precários portugueses e «passar a mensagem na rua é cada vez mais importante e difícil, pois o que não falta é publicidade a inundar o espaço público». Qual o sentido então em recorrer ao mural? A opinião de Renato revê-se na de todos os outros interlocutores: «É nossa intenção fazer passar a mensagem e marcar a nossa posição nas ruas. Sabemos que as redes sociais estão muito na moda, por exemplo, mas queremos a nossa mensagem nas ruas porque achamos importante as pessoas lá se encontrarem...a todos os níveis!». É uma visão romântica de toda esta temática, mas Renato não gosta de pôr as coisas nesses termos. Nem tudo tem de ser romântico ou supérfluo. Nem tudo tem de fazer sentido, até pela falta de sentido que faça. É confuso, sim, mas Renato fecha a conversa colocando os pontos nos is: «Um mural para mim, para além de ser uma forma privilegiada de comunicar com as pessoas, é também combater e zelar pelo espaço que é de todos nós». Fim de citação.
Renato não partiu sem deixar a ideia de que o mural político é eterno. Independentemente das suas formas, feitios, ideias, ideologias, tintas, marcas e artistas, a pintura muralista irá sempre encontrar num Portugal livre e democrático um seguimento, um caminho de continuação e de sequência. Não há como dizer não a uma expressão que o povo português - conclui-se - continua a ver como sua...por direito. Ainda que muita coisa tenha mudado desde ’74, nem tudo perdeu o seu rumo. Pelo contrário. Se hoje revemos Abril e as suas conquistas, se hoje damos graças pela liberdade de expressão - que me permite assim escrever-vos este texto - e se hoje falamos do mural político como a manifestação mais respeitosa, dedicada e despretensiosa da Liberdade e do sentido de participação cívica no nosso país, então é porque nesse mesmo país se encontrou uma via, uma escapatória, depois de quase meio século de repressão, para se fazer melhor. Para se conseguir mais. Para chegar mais longe. Para pintar, até!
A arte é e sempre será a mais perfeita reflexão libertária e democrática dos Homens. O lugar da liberdade perfeita. O escape dos sonhos. A indumentária dos pobres de bolso, mas ricos de espírito. A dádiva de um nada para um tão grande pouco. O seco choro de quem sorri. A reencarnação encantadora do encanto por si só.
Não foi nenhum filósofo que o disse. Foram os muros que pintados, falaram.


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